Quando um idoso não quer ir para um lar

Em setembro de 2018 participei no 1º Congresso da EAN (European Ageing Network), que decorreu em Praga, subordinado ao tema “Is there a future in Long-term care in Europe?” (“Há futuro para os cuidados de longo prazo na Europa”?). Discutiram-se e analisaram-se as muitas áreas, valências e especificidades dos cuidados de longo prazo a prestar aos mais idosos, mas estávamos longe de imaginar as consequências devastadoras de uma pandemia nos lares e residências que os acolhem.

Ao terminar o discurso de abertura do congresso, Aad Koster, presidente da European Association of Homes and Services for the Ageing fez um pedido: “Por favor, levante o braço quem gostaria de viver os seus últimos anos de vida num lar de idosos”. Confirmo que na audiência, composta por mais de 400 profissionais deste setor, ninguém levantou o braço.

A EAN resulta da junção da EAHSA (European Association of Homes and Services for the Ageing)  e da E.D.E. (European Associate for Directors and Providers of Long-Term Care Services for the Elderly), e congrega mais de 10 mil diretores de instituições e de outras empresas que prestam serviços a idosos. Neste seu primeiro congresso, discutiu-se como deverão ser os cuidados de longo prazo a prestar aos idosos, um extrato da população em permanente crescimento na Europa e que apresenta necessidades muito específicas de apoio, quer estejamos no domínio dos cuidados de saúde, quer no tipo de serviços que exige, quer, ainda e sobretudo, no campo das respostas habitacionais. Analisou-se igualmente o papel dos governos/autoridades, assim como a utilização eficiente dos recursos humanos, técnicos e de conhecimento do próprio setor. Entre as diversas conclusões, sobressaiu a necessidade de trabalharmos em conjunto para construir uma visão de política concertada e apontou-se 2030 como meta temporal para implementar novas respostas. Não se discutiu, e estávamos longe de imaginar, que os lares seriam dos lugares mais vulneráveis e mais atingidos por um vírus pandémico. Como tem sido noticiado, esta tragédia não é exclusiva de Portugal, é uma realidade em diversos países da Europa e restantes continentes.

A percentagem elevada de casos positivos de Covid-19 nos lares e as taxas de mortalidade associadas têm de servir para uma reflexão aprofundada sobre este tipo de instituições. É fundamental repensar a sua função e as formas de organização, de modo a conseguirmos desenvolver novas soluções residenciais que assegurem a qualidade de vida e a segurança dos cidadãos mais velhos da nossa sociedade.

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Do que falamos quando falamos de lares para idosos?

Ou, utilizando conceitos mais atualizados, do que falamos quando nos referimos a casas de repouso ou residências assistidas? Relembrando as características de instituição total de Erving Goffman (1961), extraímos as variáveis-chave deste tipo de instituição: um local fechado ao exterior, que congrega no interior a realização de atividades com os mesmos co-participantes e sob a mesma autoridade. Temos dois grupos, um grupo subordinado (residentes) e um grupo dirigente, que controla, supervisiona e regula as atividades, e que aplica um tratamento standard ao grupo subordinado. O grupo de residentes tem um contacto restrito com o mundo existente fora das suas paredes, enquanto que a equipa dirigente não só não reside na instituiçãoc como está em contacto permanente com o mundo externo. Goffman (na década de sessenta do século XX) salienta ainda a dificuldade deste tipo de instituição em manter uma existência doméstica significativa para os internados, com especial prejuízo para as relações com a família. Outra particularidade é a imposição de um regulamento, a que corresponde uma necessidade organizacional acrescida da responsabilidade assumida pela custódia dos residentes perante as famílias e as autoridades. Goffman classifica os lares para idosos na categoria das instituições criadas para cuidar de pessoas que se consideram inofensivas e incapazes.

A realidade é que tudo isto continua a ser verdade nos nossos lares.

Se, por um lado, constatamos que os principais motivos de ingresso num lar são o estado de saúde precária, dificuldades psicomotoras e falta de autonomia para as atividades da vida diária, também é verdade que, no modelo atual de lar (perpetuado pela legislação), há um desfasamento de expectativas e possibilidades entre o que o idoso ainda pode e quer fazer e o que lhe é permitido fazer. Os lares oferecem um modelo de “vida passiva”, sem tarefas, disfarçado de férias permanentes com “cama, mesa e roupa lavada” e atividades de estimulação cognitiva, fisioterapia e passeios culturais. Com o passar do tempo, esta imposição transforma-se numa desvinculação da vida social, sem preocupações ou obrigações, descomprometimento com a comunidade e um desligar progressivo, com o consequente desinteresse pela vida.

Podemos contrapor que o aumento progressivo das demências e o forte declínio das capacidades físicas e motoras da maioria dos idosos que chega hoje aos lares obrigam a uma resposta institucional, em que os cuidados de saúde são prioritários e prevalentes. E, na verdade, em muitos lares, os idosos estão de facto mais apoiados, mais acompanhados e preenchem os seus dias com atividades que dificilmente poderiam fazer se estivessem sozinhos nas suas casas. Mas, na sua essência, os lares estão vocacionados para tudo aquilo que os idosos já não conseguem fazer e, tal como estão organizados, dificilmente podem considerar prioritário aquilo que os residentes ainda podem e desejam fazer.

Quando começaram a ser noticiados casos de Covid-19 nos lares, muitos dos seus responsáveis vieram a público defender que não são instituições de saúde, justificando assim:

  1. a impossibilidade de resolverem internamente (apenas com os recursos físicos e humanos da instituição) o tratamento de residentes contagiados;
  2. a dificuldade em manterem dentro do lar residentes infetados e não infetados e, ainda,
  3. a incapacidade em gerirem a entrada e saída de funcionários e visitas.

Ao espectador mais atento a estas reportagens, não terá também passado despercebido o facto de os diferentes responsáveis utilizarem diferentes nomes para os residentes dos lares: utentes, residentes, clientes, hóspedes ou, até, pacientes, o que mostra bem a discrepância no entendimento dos objetivos e dos serviços prestados neste tipo de instituições.

Sentido de utilidade e de pertença à comunidade

Defendi em 2016, na tese de doutoramento “Soluções Residenciais para idosos em Portugal no séc.XXI – Design de ambientes e privacidade”, e continuo a defender, a necessidade de se desenvolverem modelos de co-habitação alternativos aos lares e residências tal como os conhecemos. Esse trabalho de investigação deu-me a oportunidade de conhecer e estudar o Lar de S. José de Alcalar, no concelho de Portimão, um caso que considero de grande sucesso no panorama nacional e mesmo internacional. Este lar está organizado como uma pequena aldeia composta por apartamentos partilhados por 3 a 4 residentes, um edifício distinto com espaços de apoio, como sala de refeições, capela e gabinete médico, e zonas verdes, umas ajardinadas outras de cultivo pelos próprios residentes. Aqui, os residentes entreajudam-se, têm possibilidade de escolher entre uma vida mais autónoma (todos os apartamentos estão totalmente equipados) ou com mais apoio, recorrendo, nesse caso, aos espaços comuns (refeitório, sala de estar e de atividades).

O Lar de S. José de Alcalar é um exemplo das boas práticas que estão a ser desenvolvidas em diversos países, boas práticas que consistem, essencialmente, em criar soluções em que os utilizadores conseguem manter a autonomia, o seu estilo de vida, o sentido de comunidade e, mais importante, viver numa nova casa onde se sentem úteis.

O ambiente de aldeia e a dinâmica da vida diária tornam esta instituição muito diferente dos outros lares. Durante o trabalho de campo e de investigação pude registar e testemunhar o enorme grau de satisfação dos residentes com as condições e tipo de vida que ali levam.

Para além destes aspetos positivos, este tipo de solução residencial para idosos tem ainda a vantagem de reduzir o rácio de área de construção por residente e o rácio de funcionários por residente, o que, na prática, se traduz em maior eficiência económica, quer na fase de investimento, quer na de gestão operacional.

É fácil refutar que este modelo é viável para residentes autónomos ou com um nível de dependência ligeiro, não sendo apropriado para residentes muito dependentes ou com demências severas. No entanto, de acordo com os números do relatório 2018 da Carta Social (que analisa a dinâmica da Rede de Serviços e Equipamentos Sociais em Portugal), a capacidade de realização de atividades diárias por parte dos residentes com autonomia apresenta valores que variam entre 18% (banho) e entre 22% e 61% para outras atividades (como vestir, mobilidade, utilização de instalações sanitárias, alimentação e continência). É possível concluir que temos hoje uma percentagem significativa de utentes de lares que são suficientemente autónomos para viverem em instituições que lhes proporcionem mais autonomia, melhor qualidade de vida e com um custo menos elevado para a entidade gestora.

A par do reforço nas respostas para os mais dependentes (que incluem, naturalmente, as Unidades de Cuidados Continuados), é necessário estudar novas soluções residenciais para os mais velhos, que promovam a manutenção do estilo de vida (contextualizando o meio social, económico e geográfico) e as relações sociais com segurança e autonomia.

O recente estudo Long-term care facilities as a risk factor for death due to covid-19: evidence from European and US States, de investigadores da Universidade de Telavive, aponta como uma das principais causas para a larga percentagem de mortos por Covid-19 em idosos residentes em lares, a estrutura das próprias instalações, nomeadamente a existência de uma área de estar comum, os quartos partilhados e o facto de múltiplos cuidadores tratarem de múltiplos residentes.

A  Covid-19 veio, sem dúvida, reforçar a urgência de repensar o modelo institucional dos lares de idosos.

Se desenvolvermos soluções alternativas que não sejam estigmatizantes e que, de facto, proporcionem segurança, a manutenção do nosso estilo de vida e o acompanhamento por parte das pessoas que são significantes para nós, e que são mais seguras em situações de doenças contagiosas, poderemos considerar como positiva a mudança para outra casa numa fase mais adiantada da vida.

Por coincidência, ouvi esta semana na rádio, que o Lar de S. José de Alcalar teve, até hoje, zero casos de Covid-19. De acordo com as declarações do Padre Domingos Costa, fundador da instituição, os residentes têm sabido gerir bem esta situação, estão nas suas casas, a ter os mesmos cuidados que todos nós. Não é por acaso que o Lar de S. José de Alcalar tem uma lista de espera de 300 pessoas.