Pela religiosidade e pelo didatismo do poema, seu autor só pode ser

Pela religiosidade e pelo didatismo do poema, seu autor só pode ser

17 anos de idade, ingressa na ordem de Inácio de Loyola, a Companhia de Jesus, tornan- do-se, dessa forma, um jesuíta. Em 1553, veio para o Brasil, incorporado à missão jesuítica chefiada pelo padre Luís da Grã, que acompanhava Duarte da Costa, o segundo governador geral do Brasil. De sua biografia podem ser ressaltados, entre outros fatos, a fundação do colégio de Piratininga, em São Paulo, juntamente com Manuel da Nóbrega, e a sua permanência, também junto com Nóbrega, como refém dos tamoios em Iperoig. Falece em 1597, na cidade de Reritiba, hoje Anchieta, no Espírito Santo. O gênio de Anchieta o torna, sem dúvida, o escritor mais relevante no que tange à literatura jesuítica de seu período. A obra de Anchieta é muito vasta e abrange gêneros variados, desde obras líricas, épicas e dramáticas, até cartas, sermões, crônicas e até uma Arte de gramática. Além disso, foi redigida em quatro idiomas diferentes (português, espanhol, tupi e latim), o que torna seu estudo um projeto complexo. A distribuição dos seus textos quanto ao idioma é a que segue: 2 12 em português; 2 35 em castelhano; 2 2 em latim (além de dois poemas sobre Mem de Sá e Nossa Senhora); 2 18 em tupi; 2 6 plurilíngues. Neste livro introdutório, serão apenas apresentadas, de forma breve e panorâmica, algumas das questões mais relevantes da obra anchietana para a crítica contemporânea. Chama a atenção a predominância de obras em espanhol, o que pode ser explicado, em parte, pelo fato de ser essa a sua língua materna. No entanto, Literatura Brasileira – 34 – uma análise um pouco mais atenta dos gêneros que predominam em cada idioma nos ajuda a compreender o sistema literário de José de Anchieta. Em sua língua materna, predominam poemas líricos, sendo que alguns também foram escritos em português e uns poucos em latim. O tupi, por sua vez, predomina de forma absoluta no que diz respeito às obras de teatro. Percebe-se, portanto, que o espanhol e o português lhe servem para expressão de uma espiritualidade mais subjetiva, resultado de uma experiência mística pessoal, ao passo que o tupi é a língua utilizada para produzir obras com o intuito explícito de catequese do índio. Assim sendo, existe uma divisão clara, diria-se mesmo dualista, na obra de Anchieta: ao passo que sua lírica possui aspectos literários dotados de intensa personalização, manifestando, em versos bem construídos, questões relativas tanto à intimidade quanto à tensão entre o eu terreno e a divindade cristã, o teatro anchietano possui uma intenção explícita de cristianizar o índio por meio de várias estratégias de aculturação, o que o torna didático, rígido, estereotipado e autoritário. No que tange à lírica, Alfredo Bosi (1994, p. 82) sugeriu existirem duas linhas de formação poética: 2 uma voltada à criação de símbolos tomados da vida cotidiana; e 2 outra mais afeita a uma linguagem místico-efusiva. No primeiro caso, Anchieta (2008a) utiliza símbolos retirados princi- palmente do campo semântico da alimentação e das relações de parentesco para exprimir o êxtase da ligação com Deus; por exemplo, no poema “Ao Santíssimo Sacramento”: [...] enquanto a presença tarda do vosso divino rosto o saboroso e doce gosto deste pão seja minha refeição. [...] – 35 – Literatura de informação e literatura jesuítica No segundo caso, Anchieta (apud MOISÉS, 2000) lança mão de vários recursos imagéticos e sensórios, apelando para uma ligação mais direta e efu- siva com a divindade, com a extrapolação de pulsões afetivas, como nos versos de “O Menino Nascido ao Pecador”: Yo nací porque tu mueras, porque vivas moriré, porque rías lloraré, y espero porque esperes, porque ganes perderé. É no teatro anchietano, contudo, que se encontram as questões mais relevantes e controversas para uma discussão sobre a influência da literatura jesuítica sobre a formação da literatura e da identidade brasileira, pois se trata de um projeto claramente orientado por uma subjugação cultural. Se, nos primeiros relatos de viagem, havia a impressão de que o índio não possuía religião, aos poucos os portugueses foram percebendo que existia sim uma religiosidade indígena, marcadamente centrada no culto dos mortos. A partir desse núcleo, organizavam-se vários rituais comandados pelos pajés, como cerimônias de canto e dança em que se praticava o fumo (ou o ato de fumar) e as cauinagens (em que se consumia bebida alcoólica), o que levava os parti- cipantes a uma espécie de transe. Ligado ao culto dos mortos, também estava o ritual da antropofagia. A estratégia de Anchieta foi utilizar as peças teatrais – de influência medieval, principalmente os autos de Gil Vicente – como meio de cristianizar e suplantar a religiosidade original. Suas principais estratégias foram: 2 inserir a teologia cristã a partir do imaginário indígena; 2 demonizar os heróis indígenas; 2 demonizar e animalizar os costumes nativos. O teatro de José de Anchieta ataca e demoniza não apenas os heróis, mas também os rituais indígenas. Imbuído de uma visão de mundo absolu- tamente maniqueísta, em suas peças Anchieta divide o mundo entre o bem e o mal, sendo que o primeiro está figurativizado por todas as personagens cristãs e europeias, ao passo que o segundo é construído a partir do imagi- nário religioso do indígena. Por exemplo, no Auto de São Lourenço o mal Literatura Brasileira – 36 – é representado pela personagem principal, o herói tamoio Guaixará, que havia atacado os portugueses duas vezes, e pelo chefe indígena Aimbiré. São Sebastião e São Lourenço, por outro lado, são os representantes do bem. Note, na passagem a seguir, como o ritual da cauinagem, da maneira como é exaltado por Guaixirá, acaba ridicularizado e representado como uma bebe- ragem imoral, o que deprecia seu teor religioso original: Boa medida é beber cauim até vomitar. Isto é jeito de gozar a vida, e se recomenda a quem queira aproveitar. A moçada beberrona trago bem conceituada. Valente é quem se embriaga e todo o cauim entorna, e à luta então se consagra (ANCHIETA, 2008b). Pode-se concluir que o teatro jesuítico dos séculos XVI e XVII, prin- cipalmente sob a pena de Anchieta, serviu como o suporte de uma política colonizadora que reduz o outro a si mesmo e, paralelamente, cria um dua- lismo de códigos. Como afirmou Alfredo Bosi, o caso de Anchieta é exemplar porque revela a postura do colonizador de construir um código válido para si mesmo e seus pares, de um lado, e outro código, válido para o povo, de outro: “Lá o símbolo e a efusão da subjetividade; aqui, o didatismo alegórico rígido, autoritário. Lá a mística da devotio moderna; aqui a moral do terror das missões” (BOSI, 1994, p. 93). Ampliando seus conhecimentos Reatando os fios (BOSI, 2005, p. 92-93) O missionário que se volta para o índio, prega-lhe em tupi e compõe autos devotos (e, por vezes, circenses) com o fim de convertê-lo, é um difusor do salvacionismo ibérico para quem – 37 – Literatura de informação e literatura jesuítica a vida do selvagem estava imersa na barbárie e as suas práticas se inspiravam diretamente no demônio. As cerimônias indígenas resumiam-se, em última instância, ao fenômeno da tentação vitoriosa. O mal se abatia, como uma cobra, sobre os participantes dos cantos, das danças, da caui- nagem, do rito antropofágico. O fora dominando o dentro, a pura exterioridade, a mais brutal reificação: essa a imagem que os jesuítas conceberam e nos legaram das festas tupis. Não admira, portanto, que as mensagens fundadoras e originais do cristianismo, como a igualdade de todos os homens e o mandamento do amor universal, tenham sofrido, no processo de catequese, um alto grau de entropia. A pedagogia da con- versão apagava os traços progressistas virtuais do Evangelho fazendo-os regredir a um substituto para a magia dos tupis. No entanto, a poesia do Anchieta que escreve líricas sacras já

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