A historia da pimenta autor tradição popular

A historia da pimenta autor tradição popular

era péssima devido as condições precárias de higiene, acomodações insuficientes (onde os pacientes eram acumulados em enfermarias) e o descaso da administração pública em proporcionar melhores instalações físicas. Fatores que contribuíram para que a organização do seu espaço interior fosse retardada. Somente na segunda metade do século XIX que houve a reorganização do espaço hospitalar, iniciando pelo Hospital Pedro II. “Associado à doutrina do contágio o animismo criado por Georg Ernst Stahl, exerceu pouca influência na medicina portuguesa e brasileira.” Contestando Descartes, que assegurava que as leis da matéria poderiam ser aplicáveis ao corpo humano. Os filósofos espiritualistas anunciavam a alma e o espírito como sendo os princípios reguladores dos fenômenos do Universo onde a doença e a saúde eram dependentes desse equilíbrio (MIRANDA, 2017). Segundo o autor, George Stahl considerava que a ação natural dos órgãos era resultado da ação reguladora de uma alma sensitiva, responsável pela distribuição igual e bem ordenada do espírito vital sediado no corpo, ou seja, o vitalismo. Baseado em bases mecanicistas o solidismo de Friedrich Hoffmann considerava, ao mesmo tempo, o corpo humano como sendo uma máquina e o movimento que decorria de seu funcionamento era a expressão da vida. Para Hoffmann, o corpo obedece às leis da hidráulica e tem como base o sistema de movimentos circulatórios dos humores. Esses movimentos são devidos aos alimentos que assimilados pelo sangue são dirigidos ao cérebro onde um fluido nervoso é secretado à fim de manter o movimento e, por conseguinte, as contrações do coração. Afirma ainda que as doenças surgiam devido aos humores alterados por uma intervenção anormal que perturbavam os espíritos sutis, causando desarranjos na fluência circulatória do sangue. “Apesar dos erros de sua doutrina, deve-se creditar a Hoffmann um papel importante nos estudos do sistema nervoso e suas funções vitais para o organismo.” (MIRANDA, 2017). 18 As artes de curar no Brasil, desde o período colonial, são frutos das inúmeras experiências tradicionais vivenciadas e que foram repassadas para as próximas gerações por quem as praticavam. A cura era exercida por:  Curandeiros;  Boticários;  Barbeiros sangradores;  Parteiras; entre outros. Já no século XIX eram evidenciadas as conservações de práticas sociais e culturais circunscritas, seja através da tradição popular, ou através da invenção de novas práticas de administrar a saúde, em casos de acometimento por doenças epidêmicas ou até mesmo na forma de prevenção como o fez a medicina dita acadêmica (MIRANDA, 2017). 3.1 Conflitos entre a medicina e outras práticas de cura Fonte: povodalua.wordpress.com/2016/07/30/a-curandeira Nos últimos anos da década de 1880 com a abolição da escravidão e o início do processo de Proclamação da República, a Paraíba registra uma interessante história na memorável obra de Coriolano de Medeiros. Segundo o memorial, trata- se do curandeiro Antônio Mão Santa: “afamado e rico” (MEDEIROS, 1994, p. 69 19 apud SILVA e MARIANO, 2020). O caso “Mão Santa” como ficou conhecido o curandeiro em sua popularidade, nos ajuda a entender melhor o prestígio daqueles que exerciam as práticas de cura se relacionadas à medicina acadêmica, ao mesmo tempo em que se percebiam a falta de confiança nos métodos de tratamento da medicina. Ao tratar do feitio mais ilustre do famoso curandeiro da Paraíba, o autor nos diz: Poucos dias depois de sua instalação, foi Mão Santa solicitado para curar o filho do Capitão do Porto Queiroz, o qual não obtivera melhoras com as receitas médicas, tendo sido mesmo desenganado. As esperanças dos pais do enfermo se voltaram para o curandeiro e o êxito não se demorou. Num momento toda a cidade se inteirava do milagre, e o Capitão do Porto não somente deu ao curandeiro sua estima como o acreditou perante várias famílias respeitáveis. Desta sorte se firmou e se consolidou o prestígio de Mão Santa na então cidade da Paraíba. (MEDEIROS, 1994, p. 70. Grifos nossos apud SILVA e MARIANO, 2020) De acordo com o autor, no caso de Mão Santa, houve uma inversão da hierarquia curativa naquela época, o que tornara o curandeiro mais prestigioso do que o médico graças ao tratamento dispensado ao filho do capitão do Porto. A medicina estava no pico da pirâmide hierárquica nos casos de tratamentos de doenças em detrimento dos curandeirismos. A situação nesse caso foi invertida em virtude do êxito do curandeiro sobre uma doença a qual a medicina falhou em curar. 3.2 Curandeirismos 20 Fonte: rfi.fr/br/africa/20130831-dia-africano-da-medicina-tradicional No ano de 2011 um estudo foi realizado por Ariosvaldo da Silva Diniz e citado por Silva e Mariano (2020), o qual abordam temas sobre o momento epidêmico de Cólera na província de Pernambuco surgido em 1856. Esse estudo evidencia os múltiplos agentes da cura que se fizeram presentes no cenário insalubre em Recife à fim de combater a doença, cujo caráter etiológico e terapêutico era desconhecido naquela época. Ainda de acordo com o autor: Em cena a atuação do curandeiro Pai Manoel e da medicina alopática, num emaranhado de relações que alternava entre o conflito e a admissão do curandeirismo em virtude não só do fator doença, mas também do poder exercido em larga escala pela medicina acadêmica, que se encontrava em pleno processo de emancipação e poder hegemônico. A menção ao curandeirismo no Brasil Império, sem dúvida, nos fará questionar a natureza do termo não somente para entendê-lo como um conceito voltado para as pessoas que o exerciam (especialmente o curandeiro), mas também para enfocar a sua gradual ressignificação na História do Brasil. Witter (2000 apud SILVA e MARIANO, 2020) afirma que cura é um termo que “abarca em si um número de saberes populares e de agentes da cura filiados as mais diversas tradições e culturas que tinham o seu espaço e sua validade junto aos doentes.” Portanto, a partir dessa assertiva, o termo " curandeirismo " não é mais utilizado no singular, passando a ser denominado no plural " curandeirismos ", para abranger os diversos conhecimentos tradicionais sobre os diferentes métodos de práticas de cura que eram exercidas por vários curadores. A década de 1880 pode ser destacada como um período estratégico para tratar do assunto, sobretudo se considerarmos não somente o crescimento da medicina acadêmica a qual não só deu um passo importante no poder do governo provincial, mas também considerarmos os chamados “práticos" que eram todas as pessoas que se envolveram na arte da reabilitação e cura, mas não receberam nenhuma formação acadêmica para tal (MARIANO, 2015 apud SILVA e MARIANO, 2020). 21 Numa sociedade marcada pela estrutura do poder médico-higienista em ascensão, a presença dos práticos certamente causaria desconforto, afinal, desprovidos de formação acadêmica e do aval das ciências – parte constitutiva do discurso médico –, pouco ou quase nada poderiam fazer em termos legais. Segundo Tânia Salgado Pimenta, dentro da legalidade, só poderiam exercer as artes e ofícios de curar os práticos que possuíssem licenças para tal atividade, cuja prova passaria pelo crivo, desde fins do século XVIII e início do XIX, da antiga Real Junta do Protomedicado, órgão criado por D. Maria I em 1782 e que é substituída em 1808 pela Fisicatura até o ano de 1828, quando, após isso, as práticas de cura passam a ser fiscalizadas pelas Câmaras Municipais locais (PIMENTA, 2003, p.307 apud SILVA e MARIANO, 2020). Embora se saiba pelos documentos oficiais das instituições médicas citadas que as artes de cura dependiam da legalidade imperial, a maioria das atividades relacionadas aos curandeirismos, continuaram sendo realizadas pelos curandeiros e seus colegas, em larga escala, ainda que não possuíssem carta oficial

A historia da pimenta autor tradição popular
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Luís da Câmara Cascudo, monumento do folclore brasileiro

 Guilherme Moreira Fernandes (UFRJ/UFJF)[1]

Introdução

  Luís da Câmara Cascudo é um dos maiores cientistas sociais do país, responsável por disciplinar o conhecimento popular enquanto ciência. Cascudo nasceu na cidade de Natal (RN), em 30 de dezembro 1898, vindo a falecer em 30 de julho de 1986. Veio de uma família tradicional, cursou Direito e chegou a ocupar cargos públicos como o de secretário do Tribunal de Justiça e consultor jurídico. Também chegou a lecionar na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Contudo, é o estudo do folclore e da cultura popular o maior legado de Cascudo. Sua vida foi dedicada a mostrar a importância da cultura popular e da tradição oral em época que os próprios agentes da cultura popular negavam validade às suas práticas perante a cultura letrada. É difícil buscar uma definição para Cascudo. Ele de fato foi um cientista social, com estudos ligados à Antropologia, contudo Cascudo abominava ser chamado de Antropólogo Cultural, ele se denominava como Etnógrafo, que se caracteriza por “estudar a origem e estabelecimento, modificação e vitalidade das culturas humanas” (CASCUDO, 1983a, p.26).

A noção de cultura vai permear a maioria de seus escritos. Para o estudioso não existe povo sem cultura, todos possuem capacidade criadora e modificadora. Nada está pronto e acabado. Segundo Cascudo (1983a, p. 39-41) cultura é “o conjunto de técnicas de produção, doutrinas, e atos, transmissível pela convivência e ensino, de geração em geração” e compreende “o patrimônio tradicional de normas, doutrinas, hábitos, acúmulo do material herdado e acrescido pelas aportações inventivas de cada geração”. A cultura é uma herança social.

Assim, o folclore é visto como uma manifestação da cultura popular, uma cultura viva, útil, diária e natural. Souza (2007, p. 121) aponta que “os estudos folclóricos não foram estruturados no espaço acadêmico, mas de forma alheia e, muitas vezes, em oposição a ele”. Por isso, Cascudo se preocupou em levantar o material folclórico de forma sistemática e baseada em critérios científicos. Desta forma, foram produzidos o “Dicionário do Folclore Brasileiro” (1954), com verbetes que explicam e conceituam as diversas práticas populares, e “Antologia do Folclore Brasileiro” (2003), contendo os nomes e atos dos diversos pesquisadores dessa ciência.

  Cascudo situa no passado seu objeto de estudo e sempre parte do individual para chegar ao coletivo, e do coletivo para chegar ao universal (SOUZA, 2007, p. 131). Sua obra integra suas experiências pessoais. O povo era sua fonte de informação e seu conhecimento foi assim definido.

De acordo com o Instituto Câmara Cascudo – Ludovicus, Cascudo publicou 103 livros e 121 opúsculos (livretos), além de diversos artigos em revistas científicas[2]. Certamente foi um dos pensadores mais produtivos. Sua obra abrange tanto a cultura popular em nível nacional como também em nível local. Cascudo também pode ser considerado como “bairrista”. Amava Natal e chegou a produzir diversos livros sobre a história e cultura da cidade. Sumarizar criticamente toda a sua obra nos parece uma tarefa impossível, até mesmo porque muitas edições estão esgotadas há anos.

A cidade de Natal-RN abriga duas instituições que buscam manter vivo o legado cascudiano. O Ludovicus é mantido pela família de Câmara Cascudo. O instituto fica na casa em que Cascudo morou por mais de 40 anos. Foi criado pela iniciativa da filha Anna Maria Cascudo Barreto e atualmente é presidido pela neta Daliana Cascudo Roberti Leite. O instituto abriga dez coleções, além de todo acervo bibliográfico e documental – incluindo a digitalização de toda a correspondência ativa e passiva. Há também curiosidades como as paredes autografadas da biblioteca e o mobiliário da época. A outra instituição é o Memorial Câmara Cascudo, mantido pelo Governo Estadual. O principal destaque do memorial é a biblioteca particular de Cascudo, com mais de 10 mil títulos.

A Brasilidade de Câmara Cascudo

            O Brasil certamente foi o principal objeto de estudo de Cascudo. Cascudo é autor fundamental para compreender a “identidade nacional”, indo além do mito das três raças. Cascudo não estava à procura de algo (cultura) puro (a), mas sim da sua transformação e transfiguração. Prova disso é a estratégia metodológica de construção do “Dicionário do Folclore Brasileiro” que completou 60 anos em 2014. No prefácio da 1ª edição publicada pelo Instituto Nacional do Livro, o então Ministro da Educação e Cultura, Antônio Balbino, salienta que:

Trata-se de uma das obras mais significativas de nossos valores intelectuais e que é, pela matéria que versa, um encantador contato com a alma popular brasileira, seus crendices, suas lendas, suas fábulas ingênuas e sagazes, suas histórias e seus mitos, formados aqui em trato com a terra ou transplantados da África e de Portugal. (BALBINO, 1999, p.7).

            O livro foi fruto de uma densa pesquisa bibliográfica e também etnográfica. A grande maioria dos verbetes conta com indicações bibliográficas. Cascudo também convidou outros folcloristas para colaborarem. O resultado é uma obra de consulta obrigatória e única. Não temos como afirmar que é o seu livro mais importante, mas certamente figura entre os mais conhecidos.

            Concordo com Daliana Cascudo (In: SOUZA; LIMA; LIMA, 2015, p. 161) e mostro minha predileção pelo livro “Civilização e Cultura” (1983a). Lançado originalmente em 1973 o livro é um verdadeiro tratado científico e aborda desde o período paleolítico à época contemporânea. Certamente outras obras chamam a atenção, como “História da Alimentação no Brasil” (1983b; 1983c), publicado em dois volumes, o livro que Cascudo demorou mais tempo para escrever. Uma verdadeira viagem que desvenda uma das características mais conhecidas do país: a gastronomia. Fruto de muitas heranças, a culinária brasileira é sempre alvo de muita curiosidade. Cada cultura possui uma forma própria de preparo do prato, com ingredientes distintos que revelam uma gama de diversidade de sabores. Naturalmente não é um livro de receitas, mas também não deixa de ser. Igualmente interessante é o clássico “Geografia dos mitos brasileiros” (2002), uma viagem a cada canto do país mostrando a diversidade dos mitos e suas razões, outro trabalho etnográfico que consolida nossa identidade cultural em sua ampla diversidade. 21 estados da federação[3] foram elencados mostrando suas peculiaridades marcadas pelo processo de colonização.

Seleta de Livros de Câmara Cascudo

            Toda lista e qualquer tipo de seleção traz implícita o repertório de quem a faz. Certamente são questionáveis e arbitrárias, o que pode ser denominado até de “violência simbólica” na acepção de Bourdieu, sabendo que “violência simbólica é sempre arbitrária” (BARBOSA, 2014, p. 266). Tratando de Câmara Cascudo, essa tarefa se mostra praticamente impossível. Não é a minha pouca experiência acadêmica ou o razoável conhecimento do legado cascudiano que me faz apontar isso. A própria neta, Daliana Cascudo, tantas vezes afirmou a dificuldade em selecionar livros do avô para a publicação. Nesse ponto é bastante louvável a parceria com a editora Global que já republicou mais de 30 títulos, de obras de cunho geral/nacional. Outra parceria foi firmada com a editora da UFRN para a publicação de obras de caráter local. Fazendo uso de minha arbitrariedade, listo e faço breves reflexões de obras que de alguma forma me marcaram e foram responsáveis por direcionar meu olhar. Olhar esse influenciado também pelo meu ativismo na Folkcomunicação e nas Ciências da Comunicação de uma forma geral. Todos os livros listados abaixo estão disponíveis em catálogo, lançado pela Global editora. No texto, utilizamos no título o ano de lançamento e nas referências a edição que possuímos.

Vaqueiros e Cantadores - 1939

            Embora não seja o primeiro livro de Cascudo, é considerada sua obra de estreia, visto que as publicações anteriores tinham como foco específico a cidade de Natal. Escrito em 1937, ainda se mostra como um dos principais livros para o entendimento da cultura popular e do folclore, ainda não percebido como ciência. Já nesta obra podemos perceber características que são marcas do trabalho de Cascudo, como o retorno à uma época “ideal”, às memórias de sua infância, como atesta na apresentação do livro. Logo na introdução uma passagem nos chama a atenção. Em 1939, Cascudo afirmava ironicamente:

O sertão se modifica rapidamente. Uniformiza-se, banaliza-se. Naturalmente a crítica é inoperante para eles. Melhor é a vida modernizada que a maneira velha do cavalo de sela e a viagem como “descanso”. Parentes meus que recusavam saladas de alface (“sô lá lagarta prá comer folha?) tratam negócios em São Paulo, indo e vindo de avião. O cantador recuou ante a radiola, a vitrola, o cinema, a revista ilustrada. Mas conserva seu público. Restrito, limitado, pobre mas irredutível na admiração. Ainda vivem os cantadores sertanejos. Vivem nas vilas, nas feiras, nas destas das fazendas. Algumas cidades são visitadas por eles. Natal, Fortaleza, Recife, João Pessoa têm seus cantadores nos arrabaldes distantes. Vinte anos antes eles cantavam nos salões do “Palaço do Gunverno”. Toda essa revolução veio depois de 1911... (CASCUDO, 1984, p. 16).

            Não seria surpresa alguma se o mesmo texto fosse escrito no final do século XX ou no limiar do XXI. O êxodo rural ganhou força no processo de modernização brasileira nas décadas de 1960/70. Nos últimos 20 anos podemos verificar um grande desenvolvimento brasileiro, com expansão efetiva dos sinais de rádio e TV e com a Internet adentrando no interior, embora ainda seja cedo para falarmos em inclusão digital (certamente há quem discorde disso). O governo brasileiro lançou diversos programas que visavam melhorar a condição de vida (e não apenas econômica), o que de fato fez o sertão se modificar. Hoje temos até universidades!

            Nosso objetivo obviamente não é o de confrontar o sertão e nem o de olhar para a obra de Cascudo e dizer o que permanece e o que transformou. Não estamos atrás de uma cultura pura e genuína, até porque ela não existe e nem foi o foco de Cascudo. Cascudo (1984, p. 18) finaliza a apresentação do livro dizendo: “reúno o que me foi possível salvar da memória e das leituras para o estudo sereno de Folclore brasileiro”. O exercício de memória é também o exercício do esquecimento. Mas esse não é um livro de memória, embora tenha sido construído como tal.

            Entre lembranças e esquecimentos, as páginas que seguem são analíticas. A poesia, versos e demais formatos da cultura oral/escrita sertaneja são analisadas de forma estilística, com a mesma seriedade que linguistas estudaram as estrofes de Camões.

            Na segunda parte do livro, Cascudo dedica-se a análise do “ciclo do gado”, abordando o folguedo da vaquejada. Posteriormente passa a analisar a figura do “cantador”, ainda presente em boa parte do Brasil (não somente na região Nordeste). Na sequência, vem o “ciclo social” que aborda a trajetória de Padre Cícero e também aspectos do cancioneiro popular, como o “louvor e deslouvor das Damas”, a presença do “negro nos desafios do Nordeste” e o “cangaceiro”. Cascudo então chega à parte “moderna” e aborda a forma como a cantoria sertaneja se faz presente no Nordeste. O destaque maior é o “desafio”. O desafio é uma luta entre cantadores populares “que só termina quando um dos barbos se engasga numa rima difícil e titubeia, repinicando nervosamente o machete, sob uma avalanche de risos saudando-lhe a derrota” (CASCUDO, 1984, p. 172). Essa é uma das partes mais ricas da obra. A parte final apresenta uma breve biografia dos cantadores.

Antologia do Folclore Brasileiro – 1944 e Dicionário do Folclore Brasileiro – 1954

            A forma de construção de ambas as obras são bem parecidas e até hoje únicas. Em “Antologia do Folclore Brasileiro”, obra dividida em dois volumes, Cascudo (2003) objetiva historiografar os artífices do folclore brasileiro. Indo desde Gaspar de Carvajal a Mário de Andrade e Artur Ramos. Mas não se trata apenas de um livro de verbetes. Além de uma breve biografia, Cascudo também apresenta textos dos autores. A obra é dividida em três partes: Séculos XVI-XVII-XVIII – Cronistas, apresentando os seguintes nomes: Gaspar de Carvajal, Hans Staden, Padre Nóbrega, Anchieta, Thevet, Jean de Léry, Gabriel Soares de Sousa, Fernão Cardim, Anthony Knivet, Ivo D’Evreux, Abbeville, Jorge Marcgrave, Barléu, Simão de Vasconcelos, Antonil, Nuno Marques Pereira, Domingos de Loreto Couto e Frei Jaboatão; Séculos XIX e XX – Viajantes solitários, contendo trecho de obras de: Mawe, John Luccock, Henry Koster, Debret, Saint-Hilaire, Castelnau, Bates, Avé-Lallemant, entre outros; e séculos XIX e XX – os estudiosos brasileiros (com início no vol. 1 e continuidade no vol. 2), com escritos de Sílvio Romero, Mário de Andrade, Artur Ramos, Euclides da Cunha, João do Rio, entre muitos outros.

            Já o “Dicionário do Folclore Brasileiro” é em formato de verbetes. Repletos de indicações bibliográficas, o que não é comum nesse tipo de livro. Como todo bom dicionário, é um livro de consulta obrigatória sempre. Apesar de ter contato com apoio de amigos (o que na verdade era sempre uma constância nas pesquisas de Cascudo. Sempre que uma ideia “megalomaníaca” surgia, Cascudo disparava cartas aos amigos), foi Cascudo quem fez todo o processo braçal. Embora o tempo de preparo de “História da Alimentação no Brasil” tenha sido maior, esse talvez tenha sido o livro mais trabalhoso. Um monumento único. Um patrimônio.

Geografia dos Mitos Brasileiros – 1947

            Este é um livro um pouco diferente dos demais que analisamos aqui. Não se trata de um livro teórico/conceitual e tão pouco um dicionário em verbetes. Contudo, igualmente rico. Talvez seja o mais folclórico dos livros de Cascudo. O livro é dividido em três partes. A primeira, “Geografia dos mitos brasileiros” traz a relação dos mitos em cada estado brasileiro, suas proximidades e diferenças. A segunda, mitos primitivos e gerais aborda nomes que estão em nossa memória: Tupã, Jurupari, Anhanga, Curupira, Caapora, Saci-Pererê, Ipupiaras, botos e mães-d’água, lobisomem, Mula-sem-cabeça, cuca, bruxa, entre outros. A parte seguinte apresenta secundários e locais, mas cujas “estórias” são amplamente conhecidas. Barba-ruiva, o Bradador, cavalo marinho, cavalo de três patas, a mãe do ouro, o negrinho do pastoreio, onça-boi, zumbi, são alguns dos citados.

Cascudo realiza um amplo trabalho de exploração dos mitos, indo além da mera descrição. Confronta fontes e suas raízes históricas. A linguagem utilizada também se difere um pouco de outras obras. O livro é de fácil leitura e pode até mesmo ser utilizado por estudantes dos ensinos fundamental e médio.

História da Alimentação no Brasil – 1967

Inútil pensar que o alimento contenha apenas os elementos indispensáveis à nutrição. Contém substâncias imponderáveis e decisivas para o espírito, alegria, disposição criadora, bom humor. (CASCUDO, 1983c, p. 405).

Este é um dos livros mais interessantes. A alimentação, de certa forma, já havia sido retratada por Cascudo em diversas obras, mas não da forma como “História da Alimentação no Brasil”, volumes 1 e 2, foram construídas. O livro começou a ser planejado em dezembro de 1943. Cascudo conversou com ex-escravos, senhores de engenho, coronéis e diversas cozinheiras e doceiras. Tais conversas renderam diversos manuscritos. Foram quase vinte anos de pesquisa, até que em agosto de 1963, após uma visita do Embaixador Assis Chateaubriand, Cascudo resolveu retomar o projeto. Enviou cartas para todos os cantos do país e também para o exterior, em busca de informações.  Cascudo planejou realizar uma ampla etnografia sobre a nossa gastronomia e suas diversas mutações, mas sem se ater a questões como a “Geografia do café ou do cacau. Onde o tupi recebeu do aruaco a ciência da farinha de mandioca. A odisséia do Milho” (CASCUDO, 1983b, p. 17).

            O primeiro volume é dedicado a perceber a gastronomia indígena e também dos principais povos migrantes vindos da África Ocidental (na condição de escravos) e de Portugal (na condição de colonizadores). Já no segundo tomo, Cascudo se dedica às fontes da cozinha brasileira.

            Possivelmente as fontes primárias relativas à culinária indígena tenha sido a mais complicada para Cascudo. Nessa parte, o pesquisador faz uso de diversas fontes documentais, como a Carta de Pero Vaz de Caminha, e questiona a presença do inhame nessa culinária e uma possível confusão com outros tubérculos, como o cará e especialmente a mandioca (também conhecida como aipim e macaxeira). Posteriormente, Cascudo afirma que os primeiros registros dos portugueses sobre o inhame se referiam à mandioca – a rainha do Brasil.

Quando a posse da terra começou a ser feita nasceu o elogio da mandioca e seu registro laudatório em todos os cronistas. Afirmavam, unânimes, ser aquela raiz o alimento regular, obrigatório, indispensável aos nativos e europeus recém-vindos. Pão da terra em sua legitimidade funcional. Saboroso, fácil digestão, substancial. (CASCUDO, 1983b, p. 103).

            A farinha de mandioca também é mencionada, inclusive comparado-a com o trigo utilizado para fazer os pães portugueses. Cascudo afirma que diversos governantes preferiam substituir o tradicional pão pela farinha de mandioca, uma verdadeira paixão nacional que continua até os dias de hoje:

Na geografia da alimentação brasileira o “complexo” da mandioca, farinha, gomas, tapioca, polvilhos, constitui uma permanente para 95% dos oitenta milhões nacionais, em todas as direções demográficas. Acompanha o churrasco gaúcho como a caça no Brasil Central e no mundo amazônico. Para o brasileiro do povo “comer sem farinha não é comer!” (CASCUDO, 1983b, p. 114).

            Com toda essa importância relatada por Cascudo em relação à mandioca, e que todos os brasileiros sabem, casou-nos espanto a repercussão que aconteceu quando a presidenta Dilma Rousseff resolveu “saudar” à mandioca e sua importância para a culinária indígena e nacional[4]. Talvez a rejeição possa ser explicada pelo profundo desconhecimento da nossa história e também por uma possível conotação que essa “palavra” tenha ganhado com o passar dos anos. Pura bobagem!

Outro alimento exaltado por Cascudo é o milho, que teve importância também para a gastronomia indígena, mas não como a mandioca. Outros alimentos são relatados, como a banana, a batata e o feijão. Os temperos (especialmente a pimenta) e as bebidas mais comuns também ganharam espaço.

Na sequência, Cascudo passa para a “dieta africana”. Nesse ponto é necessário lembrar que não se trata de uma gastronomia autóctone, ou seja, não se trata da gastronomia praticada in loco, na África Ocidental, e sim a forma híbrida da alimentação escravocrata, Cascudo argumenta que: “é verdade que o negro veio para o Brasil mutilado em sua personalidade psíquica, reduzido à escravatura que lhe seria formalmente diversa da que compreenderia sob o paideuma africano, sob os impositivos da tradição milenar e dentro de formas consuetudinárias.” (CASCUDO, 1983b, p. 184).

A alimentação dos escravos não aconteceu da mesma forma. De certa forma, a agricultura de cada região era determinante para a formação da dieta. Cascudo reúne diversos depoimentos que dizem ser a farinha seca, junto com banana, laranja, feijão, carne seca e toucinho os alimentos mais consumidos. A habilidade dos escravos para buscar alimentos também é mencionada.

Os antigos donos de escravos que conheci e mesmo a tradição da habilidade negra, inesgotável na improvisação de recursos para a sua manutenção, afirmava que em tempo de calamidade mais depressa morre o senhor que o cativo. O negro Antônio Gambeu, ex-escravo em Campo Grande (Augusto Severo, RN) dizia que assim como jumento cava cacimba e não morre de sede, o negro encontra comida onde o “branco” ignora. (CASCUDO, 1983b, p. 232-233).

            Cascudo também traz a informação que a cachaça também era consumida (como estimulante) e, tempos depois, o café também passou a ser utilizado com a mesma função. E também traz informações sobre outros alimentos importantes, como: leite de coco, cuscuz, azeite de dendê, quiabo, amendoim, entre outros.

            O primeiro tomo termina com a “ementa portuguesa”, nossos colonizadores e responsáveis pela aculturação indígena e também o tráfico negreiro. Certamente, traços dessa culinária foram os mais impostos, ao passo que os da culinária indígena e africana resistiram justamente porque os portugueses também passaram a consumir.

            Cascudo retorna ao período quinhentista para traçar um panorama típico da culinária portuguesa nesse período e por meio de pesquisa na obra de Gil Vicente aponta o pão, a empada de sardinha, as camarinhas, frutas de urzes e melão como típicos do período. Com o azeite de oliva e o azeite doce, o Brasil passou a conhecer a técnica da fritura. A galinha (prato preferido de D. João VI) também esteve bastante presente: “Galinha é caldo para doente, canja para recém-parida ou convalescente. Assada é de cerimônia, guisada, molho pardo, cabidela, comida não comum, para dias especiais” (CASCUDO, 1983b, p. 278). A carne de outros animais também eram fartamente consumidas. Os doces – especialmente a queijadinha de amêndoas, manjar-branco, pão de ló e fartes – são fartamente citados. De certo modo, o açúcar teve uma importância muito grande, visto que ele não era conhecido pelos índios e negros. Da mesma forma que algumas especiarias usadas como temperos. No universo das bebidas, o vinho ganha grande destaque. Inclusive, Pero Vaz de Caminha relata que Pedro Álvares Cabral ofereceu aos índios, mas a bebida não foi apreciada por eles.

            O primeiro tomo foi focado especificamente na história. Na busca de alimentos consumidos pelos povos que aqui vieram. O segundo já traz a brasilidade. O depois. O que foi feito com essa mistura. Certamente é bem mais interessante que o primeiro, pois traz impressões de Cascudo que não cabiam nas análises anteriores.

            O livro começa pela “sociologia da alimentação” e mostra que a estratégia metodológica é bem diferente de “Geografia dos Mitos Brasileiros”. Cascudo não se ateve a regiões, mas pensou o Brasil como um tudo.

            Em “elementos básicos”, o primeiro listado é a mistura do feijão com a farinha e a “criação” da feijoada, prato típico brasileiro e bem famoso entre os gringos. Na sequência vem o arroz, tido como suplemento da nossa alimentação. O arroz também o foco da seção seguinte, porém dessa vez nas vertentes de arroz doce, arroz de leite e arroz de coco. Na sequência, os temperos mais comuns: sal, açúcar e pimenta. Por fim, as hortaliças e verduras, algo que não era tão típico na alimentação dos indígenas, negros e portugueses.

            Cascudo prossegue relatando as principais técnicas culinárias: assado, cozido, guisado, frito. O preparo de sopas, caldos e papas, carne e peixe. O tradicional molho. E também bolos e doces. Por fim, é abordado o ritmo da refeição, superstições, bebidas, mitos, entre outras curiosidades. Um tratado sobre a gastronomia sem igual. Obra única que nos ensina tantas coisas. A editora Global recentemente publicou esta obra em volume único. A Heco Produções, com a direção de Eugenio Puppo, está produzindo uma série em duas temporadas, com 26 episódios, baseado nesta obra de Cascudo[5].

            Completando suas aventuras pela gastronomia, em 1977 o mestre potiguar publicou “Antologia da Alimentação no Brasil”. Nessa obra, Cascudo (1977) reúne textos curtos de diversos pensadores. De Vinícius de Moraes a Saint-Hilaire. Passando por Pereira Barreto, Artur Ramos, Euclides da Cunha e tantos outros. O conjunto de texto revela os (quase) quinhentos anos da nossa alimentação e suas tantas iguarias. Uma verdadeira viagem ao tempo.

Tradição, ciência do povo – 1971

            Outro livro riquíssimo de Cascudo que fez parte da conceituada coleção “debates” da editora Perspectiva (volume 34). A obra aborda os diversos usos da tradição popular passada no decorrer das gerações. Para os mais cartesianos, certamente a presença do termo “ciência” no título pode causar algum desconforto. O leitor menos atento pode até pensar que Cascudo estava a procura de elementos científicos para justificar crendices e superstições. Bobagem! Cascudo já anuncia na introdução do livro o seu uso para o termo “ciência”:

Aqui reúno algumas investigações na Ciência do Povo Brasileiro. Ciência no plano da concordância e compreensão geral. Constituem bases inamovíveis para o Julgamento anônimo, para a apreciação e mesmo percepção do fato social e econômico. Fundamentos na Memória, a “Memória coletiva”, de Halbwachs. Falará o Brasileiro dos sertões, sem constrangimento e disfarce. (CASCUDO, 1971, p. 10).

            Assim, o conhecimento popular é que vai ganhar destaque nas páginas que seguem. Os elementos da natureza são a tônica principal do livro. Cascudo expõem a chuva e vento e suas implicações meteorológicas tais como os populares do sertão traduzem a “comunicação divina”. É igualmente interessante é a apresentação da botânica supersticiosa. O pesquisador mostra a construção de narrativas ao observar elementos da natureza: “Durante a safra de Pequi (Caryocar brasiliensis, Camb.), nas margens do rio S. Francisco, as mulheres engravidam com mais intensidade” (CASCUDO, 1971, p. 59). Diversos exemplos similares são encontrados nas páginas seguintes. É algo que a ciência tradicional jamais comprovará (e nem estudará), mas quem crê haverá diversos argumentos para a validação deste preceito.

No capítulo seguinte, Cascudo une os elementos da meteorologia (chuva e vento) com a botânica. Os mesmos elementos fazem parte da seção seguinte, com adágios e ditos de morte: “morte do cavalo é a alegria dos urubus” (p. 94), “não come mais Pirão” (p. 99), “recebeu o passaporte para o outro mundo” (p. 100), etc. O diferencial é a preocupação em explicar alguns termos de caráter bem local e também o de referenciar algumas expressões. O mar é o tema do capítulo seguinte. Na sequência, Cascudo expõe os elementos: terra, água, ar e fogo. Por fim, Cascudo faz uma ampla exposição sobre a superstição e traz diversas curiosidades, como o fato de Santos Dumont ter construído em sua residência em Petrópolis uma escada onde só se podia subir e descer com o pé direito. Já Joaquim Nabuco se recusava a passar embaixo de escadas... Enfim, um livro muito respeitoso[6] e repleto de curiosidades.

Civilização e Cultura – 1973

            “Civilização e Cultura” é um livro ímpar na trajetória de Cascudo. A começar pela epopéia de sua publicação. O livro é um verdadeiro trato de etnografia geral, com sólidos conceitos e um passeio por toda a história da humanidade. Foram seis anos de pesquisa para a produção. Muitos o consideram como o livro de “maturidade”. Para mim, essa maturidade já havia sido alcançada com o ótimo “Vaqueiros e Volantes”, de 1937. Nove anos após a formatura de Cascudo em Direito. O livro foi finalizado em 1962 e assim começou a busca pela publicação, com diversas editoras interessadas no material. Cascudo havia dado preferência a uma. Anos depois e nada do livro publicado, resolvera pedir os originais de volta. Aí veio a surpresa: haviam sumido! O folheto “História de um Livro Perdido” (1966) narrara tal fato. Eis que os originais ressurgem com várias avarias. O mestre potiguar havia desistido da publicação, não quisera refazer boa parte do trabalho. Eis que o reitor Onofre Lopes o convence, nove anos depois. Daí, o livro ficou mais dois anos no prelo e chegou ao público em 1973. Ufa! Mas que bom que chegou.

            O primeiro capítulo trata do conceito, evolução e as doutrinas (difusionismo, paralelismo e funcionalismo) da etnografia. Na sequência, Cascudo (1983a) aborda os conceitos de cultura, civilização e a morfologia social. Importantes para a compreensão dos capítulos seguintes. Cascudo aponta o sentido etimológico da palavra “cultura” como expressão agrária, apresenta sua reinterpretação e faz um paralelo com a expressão “Kultur” da língua alemã. Se Kultur está ligado à idéia de civilização como algo totalizante, a “cultura” tem uma finalidade única, que nunca é geral ou expressão uma totalidade. Páginas adiante, Cascudo expressa sua definição:

A cultura compreende o patrimônio tradicional de normas, doutrinas, hábitos, acúmulo de material herdado e acrescido pelas aportações inventivas de cada geração. Mas esse patrimônio não abrange a totalidade das outras culturas possuidoras dos mesmos elementos constitutivos. (CASCUDO, 1983a, p. 41).

            Estratégia semelhante foi a utilizada para expor o conceito de civilização. Cascudo (1983a, p. 46-47) deixa claro: “o que se transmite é a cultura”, ao passo que “a essência da civilização é intransferível”. Sua conceituação é assim apresentada:

Creio a civilização como uma força de gravidade unificando sem fundir as unidades socioculturais. [...]. Civilização é força como um princípio de gravidade e semelhará ao que preside o sistema solar, mantendo a unidade orientada e em movimento no espaço sideral sem influência mutiladora nas elipses descritas pelos corpos submetidos à sua atuação. (CASCUDO, 1983a, p. 49).

            A partir dessas balizas teóricas, Cascudo inicia sua viagem: origem das culturas; paleolítico; epipaleolítico; neolítico; ouro, prata, cobre, bronze, ferro; pré-história e proto-história. São esses os temas do terceiro capítulo. A seção seguinte é novamente conceitual. Os termos culturologia, aculturação e miscigenação são expostos. Cascudo debate a apresenta diversos termos e elementos: ecologia, fogo, abrigo, cabelo, caça, pesca, comércio, economia, religião, arte, dança, família, direito, cultura popular, são analisado nos capítulos seguintes.

Outras expressões: as separatas

            Além de livros, Cascudo escreveu poesias e artigos para jornais. Também colaborou com inúmeras revistas científicas. Juntamente com o professor José Marques de Melo, tive a oportunidade de reeditar dois artigos e Cascudo. Dois textos brilhantes que ficaram esquecidos na vastidão de escritos do mestre potiguar. Trata-se de “Considerações sobre as relações de vizinhanças”, publicado em 1955, pela revista “Sociologia”, e “Da Cultura Popular”, divulgado em 1961 pela “Revista do Folclore Brasileiro”. Ambos os textos apresentam muito bem o universo e espírito cascudiano.

            No primeiro artigo, Cascudo (2014) inicia seu texto com a afirmação: “Em cidade grande não há vizinho. Ignora-se o nome” (CASCUDO, 2014, p. 87). A leitura da primeira frase já mostra o tom do relato e o espírito de Cascudo, saudoso há um tempo remoto, sua infância. Cascudo traça uma comparação radical entre o folkway da vida campestre com as consequências do urbanismo e a radicalização do individualismo presente nas cidades. No livro em que publicamos esse texto[7], chegamos a fazer uma pequena resalva (FERNANDES; LAIA, 2014, p. 40-41) ao afirmar que em certas regiões dos grandes centros urbanos (subúrbio e favelas) a relação de vizinhança é forte e bem parecida com as comunidades rurbanas (neologismo de Gilberto Freyre para especificar as cidades com características rurais), digo isso por minha própria experiência de morar em ambas as localidades. Considero esse texto importante para a compreensão do fenômeno urbano, iniciado com Simmel, a Escola de Chicago (Park, especialmente) chegando até os escudos mais recentes. É Cascudo quem melhor captou essa estranha relação de vizinhança, intensificada pela “vida nervosa”.

            Já “Da cultura popular” pode ser entendido como um preâmbulo de várias das obras de Cascudo. Neste texto[8], Cascudo (2013) defende a importância do saber popular “a cultura popular é o saldo da sabedoria oral na memória coletiva” (CASCUDO, 2013, p. 250), faz um paralelo com o mito de uma cultura primitiva (urkultur) e desenvolve alguns temas caros a sua pesquisa, como as diferentes visões de cultura e civilização, os mitos, fábulas e lendas, a caça, a arte cômica e o riso, o primitivo, a literatura oral e o folclore. É um texto que nos leva a tantos outros e nos propicia uma visão global da temática.

Considerações Finais

            Ao longo dessas linhas passamos por obras escritas em diversos momentos da maturidade intelectual de Cascudo. Fomos da década de 1930 a 1970, período em que se concentra a maior parte da sua produção. Podemos perceber a importância de sua brasilidade para a compreensão de fenômenos populares, além dos diversos subsídios a uma ciência do folclore. Certamente Cascudo não esteve sozinho nessa trajetória. Florestan Fernandes, Alceu Maynard Araújo e Edison Carneiro (entre tantos outros que poderia listas[9]) também foram fundamentais para a incorporação do Folclore às Ciências Sociais.

            Particularmente, gosto muito da análise de Souza (2007) sobre a importância de Câmara Cascudo para a compreensão da identidade nacional e a modernidade brasileira. Souza ressalta que o espírito das obras de Cascudo é marcada por um retorno (agarrado) à tradição. Cascudo também não se preocupava em incorporar as teorias europeias para a compreensão da nossa brasilidade, pois acreditava a realidade das produções eram (e ainda hoje é) radicalmente distintas.

            Os organizadores dessa obra foram muito felizes em enquadrar Luís da Câmara Cascudo como “brasileiríssimo”. O conjunto da sua obra nos revela diversos brasis, muitos deles certamente já estariam esquecidos caso estes registros não tivessem sido feitos. Além de um mergulho às produções de Cascudo, por ele mesmo, também fica o convite ao leitor deste texto para conhecer exegetas bem mais experientes que eu, para ficar em poucos exemplos, temos as obras de Vânia Gico, Humberto Hermenegildo e Durval Muniz Júnior.

Referências Bibliográficas

BALBINO, Antônio. Prefácio da 1ª edição. In: CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 10ª ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999. p. 7

BARBOSA, Marialva. Por que estudar os clássicos? In: MARQUES DE MELO, José; FERNANDES, Guilherme M. (orgs.). Pensamento Comunicacional Brasileiro: o legado das ciências humanas. Vol 1: História e Sociedade. São Paulo: Paulus, 2014. p. 257-266.

CASCUDO, Luís da Câmara. Tradição, ciência do povo: pesquisas na cultura popular do Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1971.

______. Antologia da Alimentação no Brasil. Rio de Janeiro: Livros técnicos e científicos, 1977.

______. Civilização e cultura: pesquisas e notas de etnografia geral. 2ªed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1983a.

______. História da Alimentação no Brasil. Vol. 1. 2ª ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1983b.

______. História da Alimentação no Brasil. Vol. 2. 2ª ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1983c.

______. Vaqueiros e cantadores. 2ª ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1984.

______. Dicionário do folclore brasileiro. 10ª ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999.

______. Geografia dos mitos brasileiros. 2ª ed. São Paulo: Global, 2002.

______. Antologia do Folclore Brasileiro. Vol. 1. 9ª ed. São Paulo: Global, 2003.

______. Da cultura popular. In: MARQUES DE MELO, José; FERNANDES, Guilherme M. (orgs.). Metamorfose da Folkcomunicação: antologia brasileira. São Paulo, Editae Cultural, 2013. p. 249-261.

______. Considerações sobre a relação de vizinhança. In: MARQUES DE MELO, José; FERNANDES, Guilherme M. (orgs.). Pensamento Comunicacional Brasileiro: o legado das ciências humanas. Vol 1: História e Sociedade. São Paulo: Paulus, 2014. p. 87-94.

FERNANDES, Guilherme M; LAIA, Evandro J. M. Para entender a gênese da comunicação humana. In: MARQUES DE MELO, José; FERNANDES, Guilherme M. (orgs.). Pensamento Comunicacional Brasileiro: o legado das ciências humanas. Vol 1: História e Sociedade. São Paulo: Paulus, 2014. p. 35-50.

FREIRE, Paulo. Extensão ou comunicação. 13ª ed. Trad. Rosisca Darcy de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006.

MARQUES DE MELO, José; FERNANDES, Guilherme M. (orgs.). Pensamento Comunicacional Brasileiro: o legado das ciências humanas. Vol 1: História e Sociedade. São Paulo: Paulus, 2014

SOUZA, Élmano Ricarte de A.; LIMA, Beatriz P.; LIMA, Maria Érica O. Câmara Cascudo e os 60 anos do Dicionário do Folclore Brasileiro. Revista Internacional de Folkcomunicação. vol. 13, nº 28. Ponta Grossa: UEPG, jan-abr, 2015. p. 154-167.

SOUZA, Ricardo Luiz de. Identidade nacional e modernidade brasileira: o diálogo entre Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Câmara Cascudo e Gilberto Freyre. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.


[1] Doutorando em Comunicação e Cultura pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação (PPGCOM) da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Bolsista Capes. Jornalista e Mestre em Comunicação pelo PPGCOM da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Professor substituto da Faculdade de Comunicação da UFJF. Diretor Administrativo da Rede de Estudos e Pesquisa em Folkcomunicação (Rede Folkcom). E-mail: .

[2] Disponível em: http://www.cascudo.org.br/biblioteca/obra/decascudo/producao/.

[3] O livro foi publicado originalmente em 1940, nessa época não existiam alguns estados, como: Amapá, Mato Grosso do Sul, Rondônia, Roraima, Tocantins e o Distrito Federal.

[4] Ver: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/06/1646966-em-cerimonia-com-indios-dilma-sauda-mandioca-e-fala-de-mulheres-sapiens.shtml.

[5] Ver: http://www.cascudo.org.br/noticia/ver/102

[6] Gostaríamos de deixar registrado que a forma como Cascudo expõe a tradição popular ligada à natureza nos remete ao ensaio de Paulo Freire (2006), escrito praticamente na mesma época, sobre a extensão rural e a forma de comunicação dos extensionistas ao levar um conhecimento técnico. Freire argumentava a importância de não questionar as crendices e demais saberes populares e que a cultura acadêmica deveria saber conviver com elas. Por fim, o educador nordestino dizia que as ações extensionistas deveriam primar sobre atitudes transformadoras e não modificadoras. “Extensão ou comunicação” foi lançado em espanhol no Chile em 1969 e a tradução brasileira é de 1977.

[7] Neste livro, ainda há textos de Júnior Pinheiro (“As relações de vizinhança segundo Câmara Cascudo”) e Sebastião Guilherme Albano e Maria Érica de Oliveira Lima (“A vizinhança, o folkway e Câmara Cascudo no século XXI”), analisando a pertinência deste texto.

[8] No livro, há uma nota introdutória produzida pelo atual presidente da Comissão Nacional do Folclore, Severino Vicente.

[9] Na primeira parte do livro “Metamorfose da Folkcomunicação: antologia brasileira” (2013), o professor José Marques de Melo e eu conseguimos resgatar diversos textos de folcloristas, escritos sobretudo nas décadas de 1940/50, que também foram importantes para a consolidação do folclore como ciência. Vale a pena a consulta.