A voz e a vez do popular

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A voz e a vez do popular
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A voz e a vez do popular

Um paradigma para os movimentos sociais no Brasil

Ana Maria DOIMO. A vez e a voz do popular: movimentos sociais e participação política no Brasil pós-70. Rio de Janeiro, Relume-Dumará. 352 páginas.

Leonardo Avritzer

Até muito recentemente, o leitor da área de movimentos sociais no Brasil encontrava-se em uma situação no mínimo incômoda. Apesar da grande produção acerca do tema existente no país (ver Jacobi, Moisés, Gohn, Paoli, Machado, Scherer-Warren), permanecia no ar a sensação de que a bibliografia havia acompanhado a ação dos atores sociais sem conseguir institucionalizar um paradigma que desse conta dos diferentes movimentos sociais, da ascensão e declínio das suas formas de mobilização. Permanecia a sensação da ausência de um marco teórico próprio capaz de integrar o conjunto das especificidades dos movimentos sociais no Brasil: o seu surgimento durante o período autoritário, a sua mobilização em torno de demandas materiais, o seu caráter, ao menos em um primeiro momento, fortemente antiinstitucional, e o significado das formas diretas de ação produzidas por esses movimentos. O livro de Ana Doimo, A vez e a voz do popular: movimentos sociais e participação política no Brasil pós-70, vem preencher essa lacuna propondo uma interpretação da trajetória dos movimentos sociais ou, como diz a autora, dos movimentos populares a partir de um duplo marco: uma análise interna dos paradigmas acerca dos movimentos sociais e uma proposta de análise dos movimentos populares no Brasil a partir de uma interpretação das suas trajetórias societária e política.

A localização da discussão sobre movimentos sociais no interior do debate mais geral das ciências sociais acerca do conceito constitui o ponto de partida do livro. Doimo localiza a discussão sobre movimentos sociais no interior da sua vertente marxista-européia, a qual indentifica movimento social e proletariado atribuindo a racionalidade da ação social "[...] a diagnósticos claramente baseados em premissas científicas, metas previamente definidas, além de regras e normas dotadas de eficácia para o alcance dos objetivos táticos e estratégicos" (p. 39). É em relação a esse paradigma da ação coletiva que surge a discussão sobre novos movimentos sociais. Por um lado, a perda da centralidade do velho movimento operário tornou-se patente. Por outro, surgem um conjunto de outros movimentos tanto na Europa Ocidental quanto na América do Norte que se irão pautar por outras categorias, tais como reivindicações não-materiais, identidade, renovação das formas de vida política. É nesse hiato que surge a discussão sobre novos movimentos sociais, tema sobre o qual a autora realiza uma extensa análise para defender dois pontos de vista. Primeiro, o de que os chamados novos movimentos sociais "[...] jamais reproduzirão o padrão clássico do conflito de classes porque as contradições agora são de outra ordem e porque os conflitos aí instalados são metapolíticos, ou seja, muito mais pautados em valores do que em reivindicações negociáveis" (p. 46). Uma segunda questão diz respeito ao modo de incorporação política dessa forma de ação, ou seja, ao fato de já não se reivindicar uma pauta política ao Estado, mas de se reivindicar autonomia em relação a ele.

A análise anterior coloca uma série de questões teóricas em relação aos movimentos sociais no Brasil: seriam os movimentos populares existentes no país um caso de novos movimentos sociais? Como entender a dimensão predominantemente material dos movimentos sociais no Brasil? Ana Doimo define as formas de ação coletivas surgidas no Brasil pós-1970 como "movimentos populares que atuam no interior de um campo ético-político", campo esse que supõe "[...] a existência de uma sociabilidade comum aflorada pelo senso de pertença a um mesmo espaço compartilhado de relações interpessoais e atributos culturais, como signos de linguagem, códigos de identificação, crenças religiosas e assim por diante" (p. 68). Essas conexões interativas geram "conjuntos de ações e fluxos reivindicativos contínuos". Com isso a autora se posiciona tanto em relação à colocação acerca da ausência de movimentos sociais no Brasil, quanto em relação a especificidades desses mesmos movimentos. Um comentário se faz importante em relação à revisão da literatura sobre movimentos sociais feita pela autora: a ausência de uma discussão sobre a abordagem norte-americana. Cohen, Tilly e McAdam tratam de uma questão que certamente ajudaria muito a autora nas suas discussões posteriores: o estabelecimento de uma dinâmica dual na política capaz de romper com a dicotomia ação direta X integração pelo Estado, dicotomia essa central nos debates acerca dos movimentos populares no Brasil.

Na segunda parte do livro, Ana Maria Doimo segue a trajetória de diversos movimentos populares surgidos no Brasil a partir dos anos 70 — o movimento do custo de vida, o movimento de moradia, o movimento contra o desemprego, o movimento de saúde, do transporte coletivo — com o objetivo de mostrar os elementos que os transformam em um campo ético-político comum. Tais elementos seriam a idéia de um coletivo "que não se deixa cooptar ou manipular", está predisposto à participação continuada na luta por seus interesses e é constituído por sujeitos "autônomos e independentes", capazes de se tornarem o fundamento da democracia e de políticas alternativas em torno dos direitos humanos e sociais (p.124). Ao mostrar todos esses elementos como formadores de uma linguagem comum, Ana Doimo sustenta que os movimentos populares no Brasil não constituem "[...] um conjunto diverso e fragmentado de ações diretas e sim [...] um campo ético-político identificado como movimento popular" (p. 179). A questão, no entanto, em relação a esse campo ético-político é se a sua concepção de ação política e de institucionalidade (ou de antiinstitucionalidade) teria sido capaz de resistir a mudanças no campo da própria institucionalidade política, em especial ao ressurgimento, com a democratização, de canais tradicionais de participação, assim como ao aumento da sensibilidade do Estado em relação às demandas populares (p. 201). Doimo aborda essa questão estabelecendo uma dicotomia entre duas formas de entendimento da ação coletiva dentro do campo ético-político dos movimentos populares. A primeira forma é denominada de expressivo-disruptiva e envolveria valores morais ou apelos ético-políticos tendentes a deslegitimar a autoridade política e a estabelecer fronteiras intergrupos. A segunda forma, denominada de integrativo-corporativa, envolveria a procura por maiores níveis de integração social e pelo acesso a bens e serviços, não sem disputas intergrupos e a interpelação direta dos oponentes.

A análise de Doimo tem a virtude de oferecer uma explicação para a ação dos movimentos populares a partir dos anos 70 estabelecendo uma linha de continuidade entre eles e, ao mesmo tempo, dissociando o papel do cientista social do papel dos atores ao apontar, na ação desses mesmos atores, características que vão além da sua intencionalidade, especialmente no que se refere às suas concepções acerca da relação entre ação direta e institucionalidade política. No entanto, é aqui que residiria, a meu ver, um dos problemas centrais da própria análise da autora: a interpretação da constituição do campo ético-político dos movimentos populares em termos da dicotomia integração/não integração, ao invés da dualidade ação direta/representação. A meu ver, o diálogo da autora com concepções duais da ação política poderia contribuir no sentido de se pensar a ação dos movimentos populares como um campo de diálogo entre uma concepção integrativa e uma concepção institucional da política, à qual esses próprios movimentos não podem ser reduzidos. Tal concepção, no meu entender, fortaleceria a própria conclusão da autora no sentido de que, longe da desintegração do campo ético-político dos movimentos sociais, o que nós temos, no caso do Brasil, é uma dualidade entre sociedade civil e Estado. Uma dualidade que o cientista social não deve procurar dissolver, mas, ao contrário, aceitar como parte da lógica da ação política.

LEONARDO AVRITZER

é coordenador do curso de mestrado em Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

  • 1

    Cf. Jean Cohen, "Strategy or identity. New theoretical paradigms and contemporary social movements",

    Social Research, 52, 4, 1985, pp. 663-716; Charles Tilly,

    The contentious french, Cambridge, Harvard University Press, 1986; Dough McAdam,

    Freedom Summer, Nova York, Oxford University Press, 1988.