A construção chega em casa não e válida pela norma padrão qual seria a forma prevista por ela

Alguns dos principais vestibulares do país, tais como o Enem e a Fuvest, solicitam a seus candidatos que façam uma redação no estilo dissertativo-argumentativo, também conhecido como dissertação escolar. Nesse tipo de texto, o redator deve apresentar um ponto de vista e defendê-lo com bons argumentos. No caso específico do Enem, é necessário, também, apresentar propostas de intervenção.

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Características

As principais características do texto dissertativo-argumentativo são:

  • Presença de uma tese (ponto de vista) – em geral, no primeiro parágrafo do texto;
  • Desenvolvimento com argumentos que comprovem a tese;
  • Conclusão em forma de síntese ou com propostas de solução para os problemas discutidos no texto;
  • Uso da norma-padrão da língua portuguesa.

O texto dissertativo-argumentativo tem sua estrutura dividida em três – introdução, argumentação e conclusão – e cada uma delas tem suas particularidades, conforme explicaremos a seguir:

O primeiro parágrafo do texto dissertativo-argumentativo deve conter duas partes – a apresentação do tema e a explicitação da tese.

Por exemplo, acerca do assunto “Caminhos para combater a intolerância religiosa no Brasil”, uma tese possível seria “o preconceito contra as religiões de matriz africana dificulta o combate à intolerância religiosa no Brasil.”

Os parágrafos intermediários das dissertações escolares são reservados para a comprovação da tese apresentada na introdução. Um argumento é composto duas partes: a fundamentação e a análise do fundamento.

Na fundamentação, o autor deve buscar provas de que seu ponto de vista está correto. São considerados fundamentos citações de autoridade, referências históricas, conceitos teóricos consagrados, notícias publicadas em jornais de qualidade, etc.

Na análise do fundamento, o redator deve explicitamente demonstrar qual é a relação entre a prova levantada e a tese proposta. Um exemplo de argumento para a tese escrita alguns parágrafos acima seria:

Segundo a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa do Rio de Janeiro, 70% de 1.014 casos de ofensas, abusos e atos violentos registrados no Estado entre 2012 e 2015 são contra praticantes de religiões de matrizes africanas. Esse dado alarmante comprova que o racismo estrutural brasileiro, advindo da herança escravocrata do país, é um dos fatores que mais dificultam o combate à intolerância religiosa no Brasil.

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O último parágrafo do texto dissertativo-argumentativo pode ser feito de duas maneiras: em forma de síntese ou com proposta de solução.

No caso da síntese, o autor deve resumir os argumentos e repetir sua tese, concluindo o raciocínio construído desde a introdução.

No caso da conclusão com proposta de solução, é preciso que o redator apresente soluções práticas e detalhadas acerca dos problemas levantados no texto. Se, por exemplo, o problema discutido na argumentação foi o preconceito contra religiões de matriz africana, a solução deve ser direcionada a essa questão. Uma proposta detalhada, é importante ressaltar, deve determinar:

  1. Agentes (quem executará);
  2. Ações (o que será feito);
  3. Meios (como a solução será produzida);
  4. Efeitos (o que gerará a aplicação da solução).

Portanto, sugerir que o Ministério da Educação (agente) produza materiais publicitários combatendo o preconceito contra religiões de matriz africana (ação) por meio de TVs, rádios, jornais e redes sociais (meio) para que os índices de violência contra centros religiosos afros diminuam (consequência) seria uma boa proposta de solução para o Enem.

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Exemplo de texto dissertativo-argumentativo

Veja, a seguir, um exemplo de dissertação nota mil na prova no Enem de 2017, cujo tema solicitado foi “Desafios para a formação educacional de surdos no Brasil”:

Na mitologia grega, Sísifo foi condenado por Zeus a rolar uma enorme pedra morro acima eternamente. Todos os dias, Sísifo atingia o topo do rochedo, contudo era vencido pela exaustão, assim a pedra retornava à base. Hodiernamente, esse mito assemelha-se à luta cotidiana dos deficientes auditivos brasileiros, os quais buscam ultrapassar as barreiras as quais os separam do direito à educação. Nesse contexto, não há dúvidas de que a formação educacional de surdos é um desafio no Brasil o qual ocorre, infelizmente, devido não só à negligência governamental, mas também ao preconceito da sociedade.

A Constituição cidadã de 1988 garante educação inclusiva de qualidade aos deficientes, todavia o Poder Executivo não efetiva esse direito. Consoante Aristóteles no livro "Ética a Nicômaco", a política serve para garantir a felicidade dos cidadãos, logo se verifica que esse conceito encontra-se deturpado no Brasil à medida que a oferta não apenas da educação inclusiva, como também da preparação do número suficiente de professores especializados no cuidado com surdos não está presente em todo o território nacional, fazendo os direitos permanecerem no papel.

Outrossim, o preconceito da sociedade ainda é um grande impasse à permanência dos deficientes auditivos nas escolas. Tristemente, a existência da discriminação contra surdos é reflexo da valorização dos padrões criados pela consciência coletiva. No entanto, segundo o pensador e ativista francês Michel Foucault, é preciso mostrar às pessoas que elas são mais livres do que pensam para quebrar pensamentos errôneos construídos em outros momentos históricos. Assim, uma mudança nos valores da sociedade é fundamental para transpor as barreiras à formação educacional de surdos.

Portanto, indubitavelmente, medidas são necessárias para resolver esse problema. Cabe ao Ministério da Educação criar um projeto para ser desenvolvido nas escolas o qual promova palestras, apresentações artísticas e atividades lúdicas a respeito do cotidiano e dos direitos dos surdos. - uma vez que ações culturais coletivas têm imenso poder transformador - a fim de que a comunidade escolar e a sociedade no geral - por conseguinte - conscientizem-se. Desse modo, a realidade distanciar-se-á do mito grego e os Sísifos brasileiros vencerão o desafio de Zeus.

Isabella Barros Castelo Branco, do Piauí.

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Plano de texto: como fazer um texto dissertativo-argumentativo passo a passo

Para produzir uma boa redação dissertativo-argumentativa, é fundamental, antes de tudo, fazer um bom projeto de texto. Para tanto, basta que o escritor escreva e preencha, em folha à parte, os seguintes tópicos:

  • Tema: escreva a frase temática inteira, não a resuma aqui.
  • Tese: nesse espaço, escreva qual será o ponto de vista defendido no texto.
  • Argumentos: elenque quais serão os fundamentos usados em cada argumento – é importante que a dissertação contenha, ao menos, dois argumentos. Em seguida, explicite como cada fundamento comprova a tese acima citada.
  • Propostas de solução: no caso do Enem, é necessário produzir sugestões para diminuir ou acabar com os problemas discutidos no texto. Portanto, nesse espaço, apresente essas soluções, detalhando as ações, os agentes, os meios e as consequências para cada solução.

“Tenho uma dúvida que me mortifica. A regência do verbo ‘chegar’ é feita com a preposição ‘a’, mas falar ‘cheguei a casa’ não me parece natural, já que ‘cheguei em casa’ é o que se costuma ouvir. A forma com a preposição ‘em’ está totalmente errada ou é aceita em algum contexto específico? Muito obrigado pela atenção.” (Mateus Zanetti)

A dúvida de Mateus pode ser mesmo um tanto mortificante, como ele diz, porque a resposta depende do grau de abertura de cada um sobre o que é certo e errado – e os árbitros normalmente consultados nesse momento, gramáticos e lexicógrafos, têm feito corpo mole há décadas na hora de reconhecer a mudança na regência do verbo chegar operada pelo português brasileiro.

“Cheguei a casa” é uma construção natural, sim – em Portugal. Assim mesmo, sem crase, com a ausência do artigo indicando que se trata da própria casa do sujeito. No Brasil, como se sabe, os falantes mantêm o artigo ausente, mas preferem há muitas gerações uma outra preposição: “Cheguei em casa”.

No primeiro caso temos a regência clássica recomendada pelos sábios, com a preposição a pondo em relevo o ato de alcançar uma meta, concluir um percurso. Na segunda construção, a preposição em dá o percurso por encerrado: o sujeito, tendo chegado, já está lá. Nuances.

Linguistas modernos tiram isso de letra com o argumento de que a regência verbal, entre outros traços da língua, não é decidida pelos guardiões da tradição, mas pelos próprios falantes. Quando se leva em conta que o escritor brasileiro Lúcio Cardoso, para citar apenas um exemplo, já escrevia uma frase como “Cheguei em casa ainda sob o domínio dessas ideias” em seu clássico “Crônica da casa assassinada”, de 1959, fica ainda mais difícil perdoar a insistência da brigada gramatical conservadora em rejeitar uma construção tão consolidada em nosso idioma – inclusive em seu registro culto.

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O fato é que a tensão ainda não se resolveu por completo. “Chegar em casa” é uma expressão tão habitual que normalmente se faz vista grossa, mas a mesma leniência não costuma ocorrer diante de frases como “Cheguei na festa atrasado” ou “Chego em São Paulo amanhã”. Neste casos, mais próprios da linguagem coloquial, não faltam professores dispostos a considerar simplesmente errado o emprego da preposição em.

No fim das contas o falante arisco precisa desenvolver uma boa dose de jogo de cintura e, sim, hipocrisia. Fica atento às ocasiões mais formais em que, sobretudo por escrito, tal uso possa ser usado contra ele. Ao mesmo tempo evita o ridículo de, numa conversa informal, pronunciar algo tão alienígena como “Cheguei a casa”.

No mais, vai sonhando com o dia em que uma geração mais arejada de sábios deixará menos distantes a língua da cabeça e a língua do coração.

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