A privatização dos presídios no direito comparado

A chegada do Feminismo (em sua diversidade de matrizes ou ondas 2 ) na Criminologia, com seu universo até então completamente prisioneiro do androcentrismo, tem produzido um impacto científico e político tão expressivo (sob a denominação de Criminologia feminista) quanto à mudança paradigmática decorrente da chegada do interacionismo simbólico e do marxismo que originaram a Criminologia crítica, da qual é contemporânea e com a qual passa a estabelecer um diálogo que, desde meados do século XX, 3 vem despertando grande interesse mas também grandes tensões com potencialidades, ora interativas e criativas, ora separatistas. E em torno dessa intersecção se erigiu, também no Brasil, intenso movimento legislativo de via dupla em relação às mulheres: descriminalizador (da intervenção penal em matéria de liberdade feminina de disposição sobre a vontade e o corpo, sobretudo quanto à outrora denominada “moral sexual”) versus criminalizador (intervenção penal, em especial, no campo da proteção da mulher contra violências); adensando o já complexo campo incide sobre ele, como uma metanarrativa, o campo da política criminal. É talvez neste que a tensão mais agudamente se tenha alojado.

Ambos os saberes têm produzido resultados de enorme importância que podem ser, salvo possíveis retificações, considerados irreversíveis.

Da Criminologia crítica deriva, lato sensu, uma teoria interacionista-materialista do desvio e da pena (controle social punitivo) nas sociedades capitalistas centrais e periféricas ou marginais, que vai de uma teoria da seletividade a uma teoria da desigualdade classista e do genocídio racista policial-militarizado na América Latina e no Brasil. O controle penal é revelado, através de sucessivas subteorias e conceitos, como uma página central da dominação imperialista e burguesa e seus resultados se traduzem na deslegitimação estrutural do sistema penal, à qual respondem movimentos abolicionistas-minimalistas de política-criminal.

Derivadas da Criminologia feminista resultam também sucessivas aproximações a uma teoria crítica do androcentrismo em criminologia e do controle social e punitivo em relação às mulheres na sociedade capitalista, perpassando pelas categorias patriarcado, sexo-gênero, colonialismo e colonialidade de gênero e enfim, pela intersecção entre gênero-classe-raça/etnia, que reforçam, analiticamente, a deslegitimação do sistema penal, mas culminam por relegitimá-lo politicamente ao demandar sua intervenção para criminalização da violência contra a mulher.

Ao indagarmos sobre uma possível zona de intersecção entre ambas as Criminologias, identificamos tanto posturas impermeáveis, marcadas pelo silêncio em relação ao outro campo, quanto posturas focadas nas “ausências” e “limites” do outro campo, que não raro assumem os contornos de uma disputa pelo poder de definição e produção de conhecimento, bem como, enfim, posturas focadas nas “potencialidades” e na incorporação de acúmulos recíprocos. Sob diferentes matrizes e adensamentos ambas as vias têm chegado a avanços que alargam a moldura analítica da criminologia crítica e/ou feminista, chegando inclusive à questão colonial, racial e interseccional. 4

No segundo sentido, criminólogos críticos são acusados de priorizar a classe e invisibilizar o gênero e a raça e de não compreenderem o sentido das demandas feministas, uma vez que acusam estas de punitivistas em sentido lato sensu, jogando-as na mesma vala das demais demandas da direita eficientista. As feministas esclarecem que, além de mera demanda “punitivista”, o sentido pleno que reivindicam é o da “nominação”, isto é, a necessidade de nominar, através da criminalização, as condutas que simbolizam violência contra as mulheres como violências de gênero e, por essa via, cumprir uma função simbólica exemplar na sociedade, como uma dimensão importante de apropriação do Direito Penal na luta pela redução e libertação feminina da violência (ANDRADE, 2018).

Feministas são, por sua vez, criticadas por não compreender o limite do sistema penal atravessado por uma deslegitimação estrutural. Sua insistência na punição, em vez de seguir a senda aberta pelos abolicionistas em busca de alternativas de controle, é vista como perigosamente relegitimadora de um mecanismo que, ao invés de protegê-las e libertá-las, duplica as violências que denunciam, sem impactar as relações de gênero.

Enquanto a hegemonia político-criminal dentro da Criminologia crítica parece pertencer ao minimalismo-abolicionismo, com base na deslegitimação do sistema penal, que ela coconstitui, a hegemonia dentro do feminismo parece se inclinar ao punitivismo–garantismo com base no argumento da referida função simbólica.

Preocupada com este “estado da arte” expressei, há uma década, que “uma das mais fortes interpelações criminológicas do presente” é “precisamente o desenvolvimento cumulativo e integrado das perspectivas ‘crítica’ e ‘feminista’, juntamente com outras, como a Criminologia racial e cultural visto que tal bipartição epistemológica não pode ser senão provisória” (ANDRADE, 2012). Realizei nessa direção uma análise integradora entre Criminologia crítica e feminista buscando não apenas uma “justaposição”, uma “colagem” ou um “atalho” de categorias microssociológicas como classe e gênero, mas uma dialetização entre as categorias macrossociológicas capitalismo e patriarcado e o acúmulo até então produzido, utilizando a estrutura “capitalismo patriarcal. ” 5

Tal análise, que é referida como pioneira no Brasil a respeito, não apenas não parece ter prosperado como a dualidade entre ambas as Criminologias dá sinais cada vez mais separatistas. E o separatismo analítico, que parece ganhar corpo na intersecção e predominar sobre uma interação dialética e criativa que leve os resultados de ambas as disciplinas às últimas consequências, com impacto negativo sobre a compreensão da totalidade e a busca de alternativas conjuntas, torna-se também separatismo político, (notadamente, como já mencionado, pela tensão na visão de política criminal) com impacto na práxis, o que é um grave problema para a cada vez mais minguada esfera pública do contexto presente: a do capitalismo neoliberal conduzido pelo protofascismo bolsonarista.

Já tratei, em outro lugar também, de tema semelhante, a saber, das dificuldades havidas, na década de 70 para 80 do século XX, de construir um projeto criminológico crítico coletivo para a América Latina, o qual foi tentado, mas não prosperou, restando esforços biográficos e grupais específicos de produção de Criminologias latino-americanas.

À época o subcontinente vivia sob a escolta da ditadura civil militar, hoje, vive sob a escolta do bolsonarismo protofascista. Em um Brasil despedaçado, seja pelo medo, seja pelo ódio-fobias ou pela guerra civil cotidiana oficialmente não declarada pelo Estado, o despedaçamento do saber crítico é um desperdício democrático e libertário que não estamos em condições de suportar. Em um Brasil apartado pela perversão da atual governabilidade, atravessado por um processo de destruição sem precedentes, tanto de nossa institucionalidade, quanto de nossa sociabilidade e patrimônio público, em que violências simbólicas e instrumentais (contra mulheres, negros, indígenas, camponeses-agricultores, LGBTT, desempregados, pessoas em situação de rua e demais grupos vulneráveis) assumem sua face odiosa e homicida, só saberes em profunda aliança podem resistir.

O imperativo do contexto, portanto, vem a somar com o imperativo do texto, da episteme, a favor do aprofundamento da interação e da aliança entre Criminologia crítica e feminista. Mais do que oportuno, e talvez vital, no sentido conferido por ZAFFARONI a uma Criminologia das margens, “de salvar vidas humanas,” 6 torna-se importante propor nessa direção uma leitura do campo que priorize o conceito de acúmulo e de potencialidades na busca da totalidade e de alternativas de controle, sobre o conceito de “ausências” ou “faltas”, cuja visão da história e do conhecimento emite resquícios de anacronismo.

A utopia, aqui, é a da reunião, a da aliança, a favor de uma práxis de resistência, diante de um contexto de horror, em que não há espaço para saberes egocentrados; como também não existe para silenciamentos e omissões patriarcais e racistas. O androcentrismo e o racismo estão estruturalmente deslegitimados. O tributo que uma Criminologia para a brasilidade deve aos povos negro e indígena e às mulheres começa a ser pago e o silenciamento das suas produções criminológicas é um grave déficit epistemológico e político.

É vital, com humildade e alteridade, reconhecer os avanços recíprocos dos campos e fortalecer a caminhada coletiva. Para tanto é necessário reconhecer e superar nossos “ismos”, (machismo, heterosexualismo, racismo e branquitude, adultocentrismo, geracionalismo, regionalismo, especismo, etc.), o que antes de ser epistêmica e politicamente potente, é subjetivamente libertador.

Pois bem, seria como caminhar na direção da interação criativa, potencializando em vez de desperdiçar o acúmulo de saberes e de experiências, para usar uma gramática proposta por Boaventura de Sousa Santos 7

Advogando a favor desta interação existem vários fatores e podemos fazer uma reflexão inicial. Primeiramente, o fato de estarmos perante saberes construídos a partir de epistemologias abertas, processuais, que vêm se redefinindo internamente e que podem adensar suas potencialidades dialógicas, criativas e propositivas, inclusive utópicas.

Tanto a moldura analítica do feminismo interacionista marxista branco quanto a moldura do feminismo negro, interseccional e decolonial ensejam potentes cruzamentos e dialetizações com a da Criminologia crítica.

Em segundo lugar, por estarmos perante saberes com afinidade política de luta. Se por esquerda entendemos uma posição social defensora dos sujeitos dominados, excluídos, vulneráveis, oprimidos, inferiorizados (as metades sacrificadas pelo sistema vigente, de que nos fala BARATTA) 8 em relações de dominação, exploração e opressão. Nessa tomada de posição, incluída a defesa intransigente dos direitos humanos, da democracia e da justiça substanciais, ambos os campos representam saberes “de esquerda”. 9 E penso que sua luta, apesar das especificidades, é uma luta comum, sobretudo, no duro território do controle penal.

Nesta reflexão inicial, vou priorizar o vetor de análise da Criminologia crítica para o feminismo porque estruturou-se primeiro, sendo a matriz da constrastação criminológica. Por se tratar de um saber reconhecido na sua luta libertária que conseguiu acumular uma resistência cognitiva e política no Brasil, aos horrores do nosso poder punitivo formal e informal, às idiossincrasias dos positivismos e que tem operado como saber pedagógico na formação de nossas várias gerações, coconstituindo o terreno sobre o qual podemos hoje realizar uma leitura crítica e revisionista, bem como fazer avançar o campo.

A criminologia crítica é, primeiramente, um saber datado, contextual. Ela se propôs a trabalhar dentro de uma moldura analítica e, como toda moldura, tem produzido conhecimento e avanços no seu âmbito. Essa moldura já foi longa e repetidamente explicitada. 10 A base epistêmica original da criminologia crítica é o interacionismo e o marxismo, a década é a de 70 do século XX, inicialmente nos Estados unidos, a seguir na Europa chegando à América Latina. O conceito fundante, extraído da economia política da pena acumulada à época é o de modo de produção da vida social recortado como capitalismo, por ser o modo de produção vigente nas nossas sociedades, visto como estrutura social e totalidade. Daí se segue uma teoria materialista do desvio e da pena, ou seja, dos processos de criminalização formais e informais. É esta a moldura analítica que opera o salto qualitativo em relação ao interacionismo desde uma episteme já consolidada, do desvio (e do crime) concebido como construção social seletiva (a teoria da seletividade, dos estereótipos, dos estigmas, das carreiras criminógenas, etc.) e caminha para uma teoria da desigualdade (de classe).

A Criminologia crítica, portanto, faz análise estrutural, macrossociológica e assume a posição condicionante do capitalismo (estrutura social) em relação ao sistema de controle social e penal, demonstrando, assim, a sua funcionalização na reprodução instrumental e simbólica da dominação burguesa (um controle de classe) num contexto predominantemente urbano, masculino e branco que não se propôs a trabalhar relações de gênero ou raciais.

Desta forma, já cumpriu - e com exuberância - o seu programa, soando anacrônico cobrar, descontextualizadamente, análises de gênero ou raciais a que não se propôs. E fez mais, ela nos conduziu, como timoneira, como bússola, com uma ousadia ímpar, quando só tínhamos as trevas dos positivismos em todas as direções do controle social, especialmente o penal. Seu método e papel pedagógico, antídoto contra a cegueira dogmática nas Escolas de Direito, são atemporais. Enfim, é de potência, muito mais do que défices, o território que nos toca explorar; neste mesmo sentido, também se pode afirmar quanto à Criminologia feminista, com seu exuberante e incansável território de descobertas a um só tempo tão corajosas quanto dolorosas, sobretudo, para Nós, Mulheres, cujo script vertido em criminologia feminista no espaço público soa demasiado familiar.

Em síntese, a indicação epistemológica da Criminologia crítica de busca da totalidade e da conexão funcional entre estrutura social e pena permanece válida e necessária para a Criminologia, mas, em definitivo, insuficiente, porque o capitalismo continua sendo a estrutura central, mas não esgota a totalidade estrutural que se busca para a compreensão da brasilidade, demandando, como temos vindo a proceder, ao seu alargamento, com o contributo de outras estruturas de poder - especialmente o colonialismo e o racismo, o patriarcalismo e o sexismo, o especismo e outras a elas conectadas, que condicionam, na sua dialetização, o controle social e penal.

Tratam-se de estruturas, de regularidades, não apenas de modos de produzir, mas simultaneamente de reproduzir a vida social e que destituem, bem como expropriam o Brasil da sua brasilidade pela violência constitutiva do pacto de exclusão seletiva de pedaços do seu povo (mestiço na raiz) que tornou-se então um vir-a-ser: um povo no qual todas as etnias-raças (índios, negros, brancos), como propôs Darcy Ribeiro 11 , classes, gêneros, sexualidades, geracionalidades, regionalidades, capacidades, aduzimos, tenham lugar, inclusão e protagonismo na construção da vida e destino comum.

Assim, as mulheres – que constitui grande parte deste povo despedaçado-, estão em secular vir-a-ser: as índias, as negras, as camponesas e ribeirinhas, as idosas, deficientes, loucas, brancas, prostitutas, lésbicas, trans, todas. De objetos e propriedades do colonizador, depois do Senhor, depois dos Pais, padrastos, maridos, estranhos; mulheres de corpos coisificados, torturados, estuprados a corpos trabalhadores, domésticos, rurais, urbanos. De corpos a corpos, enfim, o direito a pensar? A ter voz? A ser escutada? A exercer poder no espaço público? A definir os rumos não apenas da família e dos filhos, mas da pólis? A ser sujeito e não apenas objeto? Mas, como passar de vítima a sujeito se a estrutura patriarcal reitera, a cada passo, o estalido do tronco? E como sair da condição de vítima da violência masculina, do homem ao Estado e o sistema penal? “Violência contra a Mulher”, eis a longa agenda da Criminologia feminista, que uma Criminologia crítica não pode ignorar, embora possa redefinir.

A base latino-americana da Criminologia crítica, por sua vez, tem sua moldura alargada em relação ao centro capitalista, incluindo um pluralismo epistêmico, que tem a ver, desde sempre, com nosso contexto periférico e marginal, e nela estão presentes tanto as matrizes originais (o interacionismo simbólico e o marxismo - especialmente na obra de Lola Aniyar de Castro, Juarez Cirino dos Santos, Roberto Lyra Filho) quanto a teoria da dependência, a microfísica do poder, e mesmo o funcionalismo e o liberalismo político (Roberto Bergalli, Rosa Del Olmo, Raúl Zaffaroni), para ficar com alguns dos pioneiros, mas todos sob os preceitos do paradigma da reação social, do controle ou da definição.

Talvez por isso haja uma hermenêutica tão confusa entre nós quando se trata de caracterizar o conceito de criminologia crítica, que oscila entre os níveis micro do paradigma da reação social, reconduzindo-a ora ao interacionismo simbólico, ora à teoria da seletividade.

E a tradução tanto da Criminologia crítica quanto da Criminologia feminista no Brasil passou por várias formas de aproximação e acúmulos para chegarmos hoje ao estágio em que nos encontramos. A respeito é pertinente situar o trabalho que realizamos nesse sentido nas disciplinas de “Criminologia e Política Criminal”, “Cidadania e Direitos Humanos”, “Sistema de Justiça Penal” e “Justiça Restaurativa”, junto aos cursos de graduação e pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, em nível de ensino, pesquisa e extensão, em cujo locus produzimos, eu e meus orientandos de graduação, mestrado e doutorado, uma quantidade expressiva de pesquisas, parcialmente publicadas, que seguiram quatro linhas, cumulativas (entre os anos de 1993 e a primeira década do século XX até 2016). Essa história foi parcialmente abordada em recente tese sobre o Ensino da Criminologia 12 e objeto de uma Obra-Homenagem organizada pelos meus ex-orientandos.

No Brasil dos anos 90 trabalhamos as seguintes linhas de pesquisa, sobretudo, criminológicas: 1) a recepção - tradução do paradigma da reação social e da Criminologia crítica no Brasil: abolicionismos, minimalismos e eficientismo penal; 2) relações entre Criminologia crítica, feminismo e a questão racial; 3) da recepção da criminologia crítica na América Latina e no Brasil à construção da Criminologia crítica latino-americana e brasileira: em busca da latinidade e da brasilidade; 4) Justiça Restaurativa e Justiça Penal.

Destarte, a comunidade criminológica crítica brasileira, que assumiu expressiva dimensão, de norte a sul do país, vem trabalhando cumulativamente com o saber já produzido, em continuidade e aliança com ele, a favor dele e não contra ele; pois não se trata de superá-lo, mas de alargá-lo e enriquecê-lo 13 .

Com efeito, quando esta indicação epistemológica chega às sociedades latino-americanas e à brasileira em particular, que aqui interessa, a questão central foi perguntar: Qual capitalismo? Qual patriarcado? Qual racismo? E ao fazê-lo fomos em busca de nossa especificidade, da latinidade e da brasilidade. O nosso é um capitalismo tardio, dependente e periférico (à margem) que, tendo por matriz a colonização europeia e o modo de produção escravista, assentado numa economia agrária latifundiária, se estrutura como (o que proponho denominar) um “escravocapitalismo”, cuja herança tão persistente quanto vergonhosa será uma estrutura de classe racializada, excludente dos afrodescendentes e dos povos originários e mantenedora de métodos de controle social à imagem e semelhança dos métodos escravistas, como a tortura, o estupro e a pena de morte informal (penas cruéis e infamantes) exercidos pelo poder policial, prisional, patriarcal e outros.

Com base nos estudos historiográficos, sociológicos e, sobretudo, decoloniais, sabemos hoje que uma adequada compreensão do poder punitivo no Brasil deve partir da colonização relida, da inferiorização étnica dos povos originários (denominados “índios” pelo colonizador) e afrodescendentes (separados em negros, mulatos, pardos pelo colonizador) da formação agrária latifundiária, e, sobretudo, do patriarcalismo e da escravidão.

Enfim, é importante notar que o avanço do debate racial focado na dualidade brancos e negros, (feminismo negro, branquitude) tem deixado para trás a discussão sobre os povos originários, visibilizados, enfim, pelo feminismo indígena e pela justiça comunitária e restaurativa, com os quais tanto a criminologia crítica quanto a feminista registram um forte déficit de atenção e diálogo (e vice-versa) que necessita ser valorizado e alargado; pois justo os campos que mais potencializam a intersecção, a mediação com o abolicionismo e cujo objeto se situa na intersecção entre a Justiça estatal vigente e as Justiças emergentes e que tem muito a contribuir neste debate, com suas ricas possibilidades de realização de justiça e controle não violento das violências. Diante desse cenário complexo é preciso superar o anacronismo (críticas do texto fora do contexto) pela diacronia (críticas do texto no seu contexto, no seu tempo).

Em tempos de neoliberalismo (horror em ato) conduzido pelo bolsonarismo (meta horror) há que se promover um intenso diálogo do campo das criminologias com a Justiça Restaurativa e suas noções de dano que aponte para uma saída epistemológica aos impasses das Criminologias crítica e feminista em relação ao conceito de crime e pena desde uma revisão consequente do clássico binômio do labelling approach, qual seja, crime = conduta + reação social.

O segundo passo seria superar o purismo, a saber, tanto uma razão punitivista ou abolicionista pura, cujo meio termo minimalista admite várias gradações, constitui um obstáculo à tensão criativa, seja porque meramente reprodutora do status quo presente na primeira hipótese, seja porque anunciadora de um futuro talvez longínquo, na segunda. É que entre os opostos do punitivismo puro e do antipunitivismo puro, existe o contexto impuro que os contamina, e se, como na teoria dos sistemas, os saberes, ao escutarem os ruídos da impureza se fecham e os rejeitam, para manter a sua integridade e lógica interna de funcionamento, as respostas puras não cobrem a complexidade, passam ao largo dela, mas o sistema se autorreproduz. O oposto do purismo, entretanto, não é a promiscuidade, é a mestiçagem, 14 uma aliança na qual a razão pura se torna impura de e a partir do contexto, tornando-se mestiça na alteridade e na intersecção criativa, que vem e só pode vir dessa mistura de texto e contexto, a favor de respostas resolutivas positivas.

Sigo postulando, pois, uma razão utopicamente abolicionista e metodologicamente minimalista 15 que reconheça a legitimidade da nomeação simbólica de graves violências contra a pessoa 16 quando decorrente de lutas legítimas dos próprios sujeitos do polo sacrificado naquelas relações. Importante, nessa direção, que a ainda masculina e branca Criminologia crítica escute e dialogue com os argumentos feministas sem que isso implique renunciar ao acúmulo de análises sobre as potenciais consequências desta escolha. Igualmente relevante que a Criminologia feminista escute e dialogue com as críticas à criminalização, ponderando se esta escolha pode ser considerada necessária para a sua luta, na melhor das hipóteses ela corre os alertados riscos criminológicos críticos e na pior das hipóteses, ela é insuficiente, não sendo um fim em si mesmo, mas uma metodologia a médio curto prazo.

As lutas identitárias (que no caso das mulheres e negros cobrem mais da metade da população brasileira!) já adquiriram sua legitimidade no espaço público e sua potencialização depende, certamente, de sua capacidade de demarcarem suas demandas específicas, mas, a seguir, devem se conectar com a totalidade do processo de transformação social. Uma totalidade que a Criminologia crítica, que também lutou muito para adquirir sua legitimação pública, coloca no centro de sua epistemologia, cuja potencialização também depende, ademais da notável capacidade de descrever estruturas, de tocar e resolver os problemas concretos do cotidiano dos sujeitos envolvidos em situações-problemas, notadamente “violências”. O valor e também princípio subjacente à interação é o da “alteridade”.

Através da Lei Maria da Penha socializou-se no país, inclusive com o aval da Rede Globo de Televisão, em horário nobre de Jornal Nacional e tema novelístico (encampando pautas identitárias), o simbolismo do denuncismo e da punição rigorosa. Ora, se a pena se apresenta como a sacralizada oferta na bandeja do feminismo, sem a possibilidade de transcendê-la, obviamente que o efeito é o fortalecimento e a relegitimação do controle punitivo porque a função simbólica por assim dizer “cola” na função instrumental de denunciar e punir como caminho único para vítimas e agressores, ficando intocadas as relações de violência.

É apenas conjugando a política de nomeação com uma razão abolicionista sobre a punitiva que o feminismo criminológico poderá avançar, inclusive no seu tema mais caro, que é apropriação da Lei Maria da Penha nos seus potenciais dialógicos e restaurativos (sobre os punitivistas, como vem ocorrendo no senso comum) e assim conectar-se ao caminho já percorrido no Brasil da Justiça Restaurativa (ainda muito eurocentrada, masculina, classista e branca), o que temos no presente para trabalhar relações de gênero em situações problemáticas e com potencialidades para superar o impasse punitivismo versus abolicionismo. Este é o outro campo a se interseccionar com as Criminologias estruturais, revitalizando um outro muito minoritário diálogo brasileiro alargado entre Abolicionismo versus Justiça Restaurativa, criminologias crítica e feminista e vice-versa, como propusemos em recente pesquisa para o CNJ. 17

Mulheres que chegam às Delegacias (quando “sobreviventes”) sangrando, física e emocionalmente, necessitam ser acolhidas e ter garantido o distanciamento em relação aos seus agressores, a letra “protetora” da lei precisa empunhar sua “fita métrica” e a letra punitiva, uma sentença condenatória, mas ao depois, e às vezes logo ao depois, quando mulheres tendem inclusive à reconciliação, à percepção dos danos produzidos pelo sistema penal em pessoas e família, e mesmo ao perdão, precisam ter abertas, se assim o desejarem, outras possibilidades de compreensão e enfrentamento da dor e das relações. 18 Eis aí a sabedoria de não desperdiçar nem o saber e nem a experiência, tampouco o saber e as alternativas.

A intersecção é então validada no cruzamento do saber com a experiência, da teoria (às vezes pura) com a empiria, da episteme com a doxa e do diálogo com a dor, pois a dor não se trata eternamente com a dor; vale dizer, validade na práxis, e deve resultar de uma escuta atenta que evite o desperdício, tanto do saber, quanto da experiência, sempre norteada por princípios e valores que apontem para equilíbrios de poder e simetria (como a cartilha dos direitos humanos, as vulnerabilidades, as identidades de gênero, raça e classe, a dignidade da pessoa humana, o respeito, a alteridade, etc.) e que apontem, em definitivo, para um sentido de justiça e democracia de base substancial, às quais precisamos urgentemente discutir no Brasil.

Diante do exposto, afigura-se como fundamental escrutinar inicialmente o que é necessário, mas insuficiente para a construção de uma Criminologia para a brasilidade, substantivo do qual venho lançando mão para nominar uma criminologia que avance sobre o longo acúmulo euroamericano de conhecimento e experiência (acerca do poder punitivo e o controle social) e verticalize-o em relação ao Brasil real (dimensão analítica), nos termos das estruturas acima delineadas, mantendo como pauta criminológica o compromisso com a compreensão e a superação das violências (estrutural, institucional, simbólica, intersubjetiva), esta também sua dimensão utópica e libertária dos violentados em relações de dominação, exploração, opressão, inferiorização e assimetrias: enfim, libertadora das metades sacrificadas em todo o projeto de violência como o poder punitivo formal ou informal; ou, como no Brasil bolsonarista, o poder punitivo informal (as milícias) que se fizeram poder formal (estão no Estado). E uma tal utopia envolve muitos passos e uma longa agenda para tratar das próprias questões aqui discorridas, a começar por uma discussão coletiva profunda sobre quem são hoje no Brasil os sujeitos dessa libertação, os sujeitos da luta criminológica(?) em nome dos quais lutamos. E creio que, das “classes subalternas” (fundação da Criminologia crítica) às mulheres (feminismos), passando pelo povo negro está a central, derradeira e esclarecedora pauta para as tantas questões em aberto.


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2019: Um ano de desafios e resistência

No editorial de dezembro de 2018 deste Boletim, o IBCCRIM fez uma contundente análise da onda punitiva e antidemocrática que se avizinhava na esteira da vitória de grupos de extrema-direita nas eleições gerais daquele ano. Foi nessa conturbada conjuntura política sem precedente desde o final da ditadura civil-militar, que a atual gestão do Instituto (2019-2020) iniciou o seu mandato, com a certeza de que dias desafiadores aguardavam o país e todas as pessoas e instituições que promovem e defendem os valores democráticos.

No editorial de dezembro de 2018 deste Boletim, o IBCCRIM fez uma contundente análise da onda punitiva e antidemocrática que se avizinhava na esteira da vitória de grupos de extrema-direita nas eleições gerais daquele ano. Foi nessa conturbada conjuntura política sem precedente desde o final da ditadura civil-militar, que a atual gestão do Instituto (2019-2020) iniciou o seu mandato, com a certeza de que dias desafiadores aguardavam o país e todas as pessoas e instituições que promovem e defendem os valores democráticos.

Os efeitos dessa onda não tardaram a se revelar. Durante todo o ano, fomos confrontados com iniciativas governamentais e fatos, que confirmavam o aprofundamento do autoritarismo e das políticas de extermínio contra populações historicamente marginalizadas. O falacioso pacote “anticrime” promovido pelo Ministério da Justiça; o esvaziamento do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT); o aumento da letalidade policial em vários estados da Federação; os reiterados massacres no sistema prisional – e até em um baile funk na favela paulista de Paraisópolis – foram apenas alguns dos mais evidentes exemplos dessa política cada vez mais vocacionada para a produção da morte. Sem contar o redobrado impulso genocida contra os povos indígenas na Amazônia, os ataques diários contra a liberdade de imprensa e a guerra cultural promovida pelo governo federal para impor seu ideário reacionário e antipluralista, à revelia da Constituição Cidadã.

Mas, se 2019 entrará para a história como um dos anos mais sombrios da nossa jovem democracia, também ficará marcado como um período de resistência, no qual a sociedade civil demonstrou enorme capacidade de fazer frente ao autoritarismo e ao obscurantismo político.

Nessa conjuntura, o IBCCRIM atuou incansavelmente no Congresso Nacional e no Supremo Tribunal Federal, buscando conter os impulsos punitivistas e produzir subsídio científico e dogmático para os debates travados por Parlamentares e Ministros. Nesse sentido, o IBCCRIM atuou em diversas demandas junto ao STF, na qualidade de amicus carie, e teve importante participação em julgamentos históricos, como na reversão do posicionamento que autorizava a execução antecipada da pena com condenação em segunda instância. No que toca às políticas legislativas, o IBCCRIM, juntamente com organizações parceiras, sediou a campanha “Pacote Anticrime: uma solução fake”, tendo logrado, ainda, a aprovação da figura do “juiz de garantias”, a partir do texto-base que redigiu sobre as “16 medidas contra o encarceramento em massa”.

Ademais, o instituto continuou a difundir uma ciência criminal firmemente ancorada em princípios democráticos, com 37 novas publicações em apenas um ano, entre monografias, obras especiais e periódicos. Somam-se a isso, as tradicionais “mesas de estudos e debates”, os projetos Biblioteca Convida e Biblioteca Cidadã, diversos eventos em parceria com outras instituições, o II Novembro Negro do IBCCRIM e uma das maiores edições já realizadas do Seminário Internacional de Ciências Criminais, que chegou à sua 25ª edição com ampla aprovação dos participantes e patrocinadores.

Nunca foi tão importante manter o IBCCRIM como uma trincheira democrática e como um centro irradiador de conhecimento crítico. Afinal, poucas organizações são capazes de atuar em todo território nacional, incidindo da formação acadêmica - com os laboratórios de iniciação científica e grupos de estudos avançados - até as mais altas instâncias de formulação de políticas públicas.

A atual gestão do IBCCRIM também tem buscado inovar na forma de se comunicar, ampliando a sua atuação nas redes sociais, utilizando aplicativos de mensagem e até criando novos meios de difusão do conhecimento, como o podcast “Virando a Chave”. Neste semestre, também colheremos os frutos de iniciativas que vêm sendo trabalhadas há meses, como o novo site institucional - com inúmeras novas funcionalidades -, que irá melhorar significativamente a experiência dos seus usuários. Além disso, será realizada pesquisa de satisfação, que colherá a opinião das associadas e associados sobre a atuação do Instituto, visando melhor orientar a gestão em suas definições estratégicas.

Sem tirar o foco dos problemas postos pela conjuntura política, o IBCCRIM também tem prestado grande atenção aos seus desafios internos. Democratizar o acesso aos seus produtos e eventos e promover a diversidade em seu quadro dirigente é uma das questões mais urgentes para a atual gestão. Ainda em 2019, foi implementado o maior programa de bolsas na história do Instituto, abrangendo todos os seus cursos, além de uma iniciativa de inclusão de pessoas em vulnerabilidade social e econômica em cargos de coordenação ou coordenação-adjunta, com base em critérios objetivos e com ampla transparência e controle – medida que foi premiada pela Prefeitura de São Paulo com o Selo de Direitos Humanos.

Por fim, mas não menos importante, o IBCCRIM está atento à necessidade de aprofundar a modernização e profissionalização da sua gestão. Não como um objetivo em si, mas visando a cumprir seus objetivos estatutários com ainda mais eficácia e sustentabilidade.

Em um ano com tantos desafios, mas também com tantas realizações, resta agradecer a todas e todos que colaboraram para este resultado. Sem o apoio do corpo associativo, da equipe técnica e de colaboradoras e colaboradores, o IBCCRIM não poderia seguir em sua missão de defesa dos valores democráticos e de difusão das ciências criminais.

Sobre presunção de inocência, “negro de alma branca” e Black Mirror

Resumo: O presente artigo tem por objeto o estudo do enfrentamento judicial do princípio da presunção de inocência, em casos onde o negro é investigado ou acusado criminalmente, tomando-o como ilustração do quanto abordado no episódio Men Against Fire, da série Black Mirror. Intenta-se, com isso, verificar a influência dos marcadores raciais na ponderação sobre o princípio em tela, levantando a hipótese, que ao final é confirmada, de que as diferenças raciais, que caracterizam a sociedade brasileira, reproduzem-se, inexoravelmente, no processo penal.

Palavras-chave: presunção de inocência; racismo; direito penal; processo penal.

Abstract: The purpose of this article is to study the judicial confrontation of the presumption of innocence principle, in cases where a black person is investigated or criminally accused, taking this as an illustration of what happens in the episode Men Against Fire, of Black Mirror series. The aim is to verify the influence of racial markers on the weighting of the principle in question, raising the hypothesis, which is confirmed at in end, that the racial differences that characterize Brazilian society inexorably reproduce themselves in criminal proceedings.

Keywords: presumption of innocence; racism; criminal law; criminal procedure.

Autor: Misael Neto Bispo da França e Aline Santana Alves

O famigerado princípio constitucional da presunção de inocência, previsto no inciso LVII, do artigo 5º, da Constituição da República Federativa do Brasil, tem perdido cada vez mais a sua força no Judiciário brasileiro. A possibilidade de execução da pena de prisão quando ainda cabe recurso, e sem que sejam verificados os pressupostos da prisão cautelar, perfaz uma prova cabal dessa perda de efetividade do princípio. Há muito mais tempo, porém, esse direito fundamental é negado à população negra, antes mesmo do início da ação penal. A regra, desde a abordagem policial, é a presunção de culpa, a qual vai se intensificando à medida que as mãos que dirigem a persecução penal vão ficando, institucionalmente, mais brancas.

Ao longo da história do Brasil, os brancos viabilizaram formas de opressão aos negros cada vez mais entranhadas na sociedade – sendo o racismo (em suas mais variadas formas) a pedra de toque dessa dominação; principalmente quando já não era mais permitido valer-se dos grilhões e da chibata.

Por meio do braço armado do Estado, essa dominação dos corpos negros, após a abolição formal da escravatura, foi sendo naturalizada e absorvida pela sociedade, invariavelmente insensível e indiferente ao sofrimento do povo afrodescendente. A subjugação da negritude é verificada desde o racismo, com uma roupagem científica do início do século XX, à repressão popular que tenta calar o combate a esse mal, acusando-o de “mi-mi-mi” e de “vitimismo” – o que, com o caos das redes sociais, ganhou muita força ao longo da segunda década do presente século.

Como forma de inviabilizar o enfrentamento direto do racismo ao longo do século passado, além de negar e precarizar o acesso a direitos básicos para a população negra e seus descendentes, as falsas benesses e as teorias feitas para abrandar superficialmente a crueldade do racismo foram ganhando espaço. O desfavor da teoria do “paraíso da mestiçagem”, com a ideia de uma paz plena entre as lindas raças que construíram a nossa pátria amada nada gentil, vendia aos gringos a imagem de que toda a população era mestiça e que isso de racismo era o que hoje denomina-se “fake news”. E, em meio a teorias incipientes voltadas para a negação de um racismo que qualquer inglês sempre conseguiu ver, foi inventada a teoria do “negro de alma branca”.

A suposta benesse de ser visto como tal deveria ser almejada, como se, apesar da presumida desventura de ter nascido negro, fosse possível, para além da mestiçagem, obter alguma branquitude. Então, a alguns negros ditos mais valorosos, cabia a constatação de haver neles uma “alma branca”. Ou seja, além de reconhecer que esses indivíduos agora possuíam alma, esta, ainda por cima, poderia ser equiparada à de um branco. Isso porque precisava haver uma explicação além do alcance dos olhos para o fato de aquele negro ser, minimamente, tolerável para o branco racista.

Na socialização e no limite da conveniência, a teoria do “negro de alma branca” ainda perdura. Mas ela não encontra espaço em um terreno forjado para não permitir racionalização, dúvidas ou ponderações. A estrutura de poder brasileira, que é a mesma desde meados do século XVI, precisa da subjugação de uma massa humana para que uma pequena parcela siga com acúmulos crescentes de riquezas. O rico precisa explorar a vida e a força de trabalho do pobre para ser rico; a pobreza é o paradoxo inevitável da riqueza. Para sobrar tanto de um lado, é preciso faltar muito de outro. E há muito de indecência em não poucos casos de acúmulo de riquezas no Brasil.

Para que a manutenção de tantos privilégios prossiga, o Estado precisa ser tão racista que praticamente nenhum benefício social para os negros deve ser considerado. As consequências do processo formal de abolição da escravatura, com a marginalização do povo negro, a quem foi negado o acesso a moradia, trabalho e condições de sobrevivência digna, revelam muito bem sua exploração.

Definitivamente, no sistema penal brasileiro não existe alma branca em negro. A brutalidade das instituições penais e a sua instrumentalização voltada para a perpetuação do ciclo racista suplantam qualquer forma de abrandamento. Esse sistema penal encrudescido é a pedra fundamental da dominação dos corpos negros e da manutenção da desigualdade social brasileira que, por força do passado escravocrata e das muitas formas de racismo, é também racial. Vejamos:

Dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), de 2018, dão conta de que, de 2006 a 2016, houve um aumento de 23,1% da taxa de homicídio de jovens negros, ao passo que a mesma taxa contra não negros sofreu um decréscimo de 6,8% no mesmo período.(1)

Por outro viés, o Cadastro Nacional de Pessoas Presas do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) revela que 54% dos presos no Brasil são pretos ou pardos.(2)

Esse predomínio da negritude, lamentavelmente, não pode ser visto nas instituições que administram as consequências da violência a que está submetida. Os homens negros representam 18% da magistratura federal e 19% da magistratura estadual, segundo dados do CNJ de 2018.(3)

No Ministério Público Brasileiro, apenas 22% são compostos por promotores e procuradores negros, percentual muito inferior aos 76% de membros brancos, nos termos de pesquisa realizada em 2016, na Universidade Cândido Mendes, que pôs em xeque a função de guardião da democracia do parquet.(4)

As instâncias formais de controle, sobretudo aquelas que dirigem o processo penal, tornaram-se peças de uma engrenagem disposta a segregar pessoas, encarcerando uma parcela da sociedade em prol da manutenção dos privilégios de outra. Nesse aspecto, compreende-se que a prisão cumpre muito bem o seu papel. Tais considerações, elevadas ao extremo, noticiam a existência de um projeto de biopoder pautado na ideia de morte de alguns indivíduos para a garantia do status quo de outros, no que ficou conhecido como necropolítica.

O Estado brasileiro, desde a sua formação enquanto colônia, viabiliza formas de exclusão social, econômica e política dos negros, para, depois, por meio do sistema penal, dar uma resposta imediatista, que em nada soluciona a problemática sempre crescente da criminalidade. E, acobertado pela falsa desculpa de combate à criminalidade, segue o secular plano de genocídio da negritude: o sistema penal traça o perfil do inimigo com o apoio da mídia corporativista, que o reproduz massivamente, cristalizando no imaginário coletivo – inclusive dos juristas – que negra é a pele do crime.

Ilustra-o, e bem, o seguinte excerto extraído de sentença de procedência parcial proferida pelo Juízo da 5ª Vara Criminal do Fórum de Campinas/SP: “Vale anotar que o réu não possui o estereótipo padrão de bandido, possui pele, olhos e cabelos claros, não estando sujeito a ser facilmente confundido”. (Processo 0009887-06.2013.8.26.0114)

A construção da cara do inimigo é indispensável para que os “heróis” armados – na maioria das vezes também negros – matem sem remorso ou responsabilização. É preciso construir muito bem o inimigo e desumanizá-lo. É como no episódio “Men Against Fire”(5) da série Black Mirror (temporada 3, episódio 5), em que era preciso moldar o olhar dos soldados para que eles matassem de forma mais eficiente, efetivando o projeto eugenista de seus superiores. Isso porque, se o soldado conseguisse enxergar um semelhante ao invés de ver um inimigo desumanizado – identificados no episódio como baratas –, as dúvidas acerca dos fundamentos da barbárie institucionalizada e do extermínio de determinado grupo começariam a pairar.

Se os agentes de extermínio e opressão dos corpos negros (se) vissem (n)a alma das suas vítimas, a missão do Estado racista estaria fadada ao fracasso. É muito mais fácil ver a imagem simplificada do inimigo não humano para exterminá-lo impiedosamente. E é justamente nessas condições que a sensação de dever cumprido aflora.

O Estado, com armas em riste, executa os corpos indesejáveis com a desculpa de ser esse o único caminho para combater a criminalidade, criada majoritariamente por mazelas sociais seculares que persistem. Então, deixa claro aos seus soldados que não há tempo de ver almas. É preciso eliminar o inimigo, não cabendo presunção de inocência alguma. E não se trata de ficção. Justamente por isso que é tão Black Mirror.

Referências

BERTULIO, Dora Lucia de Lima. Direito e relações raciais: uma introdução crítica ao racismo. Dissertação (Mestrado em Direito). Centro de Ciências Jurídicas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1989.

FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. v. 1. 5. ed. São Paulo: Globo, 2008.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. 3. ed. São Paulo: N-1, 2018

OXFAM. País estagnado: um retrato das desigualdades brasileiras – 2018. Disponível em: <https://www.oxfam.org.br/sites/default/files/arquivos/relatorio_desigualdade_2018_pais_estagnado_digital.pdf>. Acesso em 08/04/2019.

PAIVA, V.L.M.O. Metáforas negras. In: PAIVA, V.L.M.O. (org.). Metáforas do cotidiano. Belo Horizonte: UFMG, 1998. p. 105-119. Disponível em: <http://www.letras.ufmg.br/site/e-livros/Met%C3%A1foras%20do%20Cotidiano.pdf>. Acesso em: 08 abr. 2019.

TELLES, Edward. Racismo à brasileira: uma nova perspectiva sociológica. Rio de Janeiro: Relume-Dumará: Fundação Ford, 2003.

Misael Neto Bispo da França

Doutorando em Direito pela UFBA. Professor de Processo e Prática Penal da UFBA. Analista Jurídico do MPF. Membro do IBADPP.

ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2468-9845


 Aline Santana Alves

Graduada em Direito pela UFBA e pela Universidade de Coimbra (UC). Pós-graduada em Direito da Comunicação Social pela UC. Advogada.

ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8105-3013


(1)Disponível em: <www.ipea.gov.br>. Acesso em: 09 abr. 2019

(2)Disponível em: <www.cnj.jus.br>. Acesso em: 09 abr. 2019

(3)Idem.

(4)Disponível em: <www.ucamcesec.com.br>. Disponível em www.cnj.jus.br>. Acesso em: 09 abr. 2019

(5)Disponível em: <https://www.imdb.com/title/tt5709234/>.

Recebido em: 09/04/2019

Aprovado em: 15/06/2019

Versão final: 15/07/2019

(In)dispensabilidade da fundamentação no PAD instaurado na execução penal

Resumo: O presente artigo evidencia posicionamentos divergentes das cortes superiores e da doutrina sobre o procedimento administrativo disciplinar instaurado no curso da execução penal, dentre eles a própria imprescindibilidade do procedimento. Conclui-se ser indispensável para a garantia de direitos individuais a fundamentação exaustiva pela Administração Penitenciária na decisão colegiada que sanciona o interno pela prática de falta disciplinar. A decisão colegiada deve ser clara na exposição dos fatos e dos seus fundamentos, de forma congruente com a prova produzida e conter as discussões suscitadas para a tomada da decisão, sob pena de incorrer em excesso de execução.

Palavras-chave: Procedimento administrativo disciplinar. Sanção disciplinar. Fundamentação.

Abstract: The present article shows superior court’s and doctrine’s divergent understanding about the disciplinary administrative procedure in the execution of criminal punishment, inclusively, the indispensability of that procedure. It concludes that it is indispensable for the guarantee individual rights the exhaustive reasoning by the Penitentiary Administration in the collegiate decision that sanctions the inmate for the practice of disciplinary offense. The collegiate decision must be clear in the statement of the facts and their legal grounds, consistent with the evidence produced and must contain the discussions raised for the decision, otherwise it may incur in excessive execution of criminal punishment.

Keywords: Disciplinary administrative procedures. Disciplinary punishment. Reasoning.

Autor: José Flávio Ferrari Roehrig

Não são raras as ocasiões em que presos condenados ou provisórios infringem ou são acusados por infrações às normas disciplinares no interior do estabelecimento prisional que os custodia. Essas infrações disciplinares abrangem tanto condutas mais insignificantes, como, por exemplo, não se apresentar ao diretor ou agente penitenciário com as vestes em ordem, até as mais graves, como, por exemplo, a incursão no crime de homicídio.

Diante da suspeita da prática de uma falta disciplinar, independentemente de sua natureza, se leve, média ou grave, instaurar-se-á procedimento administrativo disciplinar para a sua apuração, conforme regulamento próprio de cada Estado, garantindo o direito ao contraditório e à ampla defesa ao interno, sendo imprescindível a defesa técnica, conforme preleciona o artigo 59 da Lei de Execução Penal e a Súmula 533 do Superior Tribunal de Justiça.([i])

Nesse caso, em que se discute a liberdade de ir e vir do cidadão,([ii]) é inapropriada a utilização da Súmula Vinculante 5,([iii]) que dispensa a defesa técnica por advogado ou defensor público, pois “esse Enunciado é aplicável apenas em procedimentos de natureza cível”.([iv]) No mesmo sentido, o entendimento reafirmado nos autos da Reclamação 8830/SP.

O mencionado entendimento sumular, além de tornar imperiosa a defesa técnica no procedimento administrativo disciplinar, doravante denominado PAD, também torna imprescindível a instauração de PAD para apurar a conduta do tutelado.

E não podia ser outro o entendimento, porque cuida-se de um mecanismo de controle que configura um limite ao poder disciplinar do Estado perante o recluso, em outras palavras, embora lhe seja atribuída tal competência, deverá respeitar o devido processo legal, não deixando brechas para a arbitrariedade.([v]) Há, em outro vértice, o posicionamento de que o procedimento decorrente da prática de uma infração disciplinar deva tramitar exclusivamente na via judicial,([vi]) dispensando-se o procedimento administrativo. Vale anotar que o RE 972.598/RS, de relatoria do Min. Luís Roberto Barroso, com repercussão geral reconhecida, submetido a julgamento ao plenário físico, mas ainda pendente, definiu, em sede de acórdão proferido pelo plenário eletrônico, que a judicialização do procedimento dispensa a instauração do PAD e supre qualquer vício decorrente do PAD, notadamente a ausência de defesa técnica.([vii])

Não se ignora tal posicionamento, especialmente porque a judicialização do procedimento faz-se extremamente necessária a fim de garantir maior controle exercido pelo Poder Judiciário dos atos administrativos. Diga-se mais, espera-se que um dia o procedimento tramite exclusivamente no Judiciário, pois somente assim afastar-se-ia da origem inquisitória da execução penal e aproximar-se-ia da necessária visão garantista, exercida por meio do sistema acusatório, conforme já afirmou-se outrora.([viii])

Apesar dessa visão acima pontuada ser a mais adequada, ao menos na visão deste que subscreve, a atual redação da Lei de Execução Penal de forma objetiva impõe a realização do procedimento administrativo disciplinar, tanto é que se cuida de entendimento sumular (533) do STJ e, mais recentemente, no HC459.330/PR do STJ, que decidiu pela necessidade de procedimento administrativo disciplinar também nos casos de violação das condições da monitoração eletrônica, não suprindo sua falta a realização de audiência de justificação. Ou seja, entre as cortes superiores não há consenso sobre a dispensabilidade do PAD quando ocorre a judicialização do procedimento. Essa dissonância, além de gerar instabilidade e insegurança jurídica, leva à visão que reputo ser mais adequada, de que tanto o PAD se faz necessário, observando-se a necessária formalidade, especialmente a fundamentação, quanto a judicialização do procedimento.

À luz da jurisprudência do STJ, a mencionada judicialização, externada por meio da audiência de justificação, prevista no artigo 118, § 2º, da Lei 7.210/84, somente é imprescindível quando ocorre a regressão de regime prisional([ix]) ou inclusão do preso no regime disciplinar diferenciado, ou seja, no sentido contrário, caso o tutelado já esteja cumprindo pena em regime fechado e seja sancionado em um PAD por falta grave, sem inclusão no RDD, dispensa-se a realização da audiência de justificação perante o juiz da execução penal.

Sendo assim, nem todas as faltas graves apuradas no âmbito administrativo passarão também pelo contraditório da audiência de justificação, mas tão somente aquelas que conduzirem à regressão de regime (art. 118, I, da LEP) ou inclusão no RDD. Nos casos em que se dispensa a realização da audiência, o juiz receberá a comunicação do conselho administrativo disciplinar e, após contraditório escrito, irá decidir pela homologação ou não da sanção. Vale anotar que o controle realizado pelo Poder Judiciário não pode incidir sobre o mérito do ato administrativo, mas tão somente de constitucionalidade e legalidade.([x])

Diante dessa realidade, surge a necessidade de maior formalidade e atenção à necessária fundamentação no PAD, ora defendida neste trabalho. A Lei de Execução Penal dispõe ser indispensável a motivação da decisão administrativa proferida, consoante parágrafo único do artigo 59,([xi]) exigência que proporciona melhor controle jurisdicional sobre a atuação administrativa,([xii]) além de conferir ao interno o direito de apontar os erros contidos na decisão e deles recorrer ao órgão administrativo superior. Esse preceito deve ser respeitado tanto para as decisões provisórias de isolamento preventivo, por exemplo, quanto para as ocasiões em que o tutelado é sancionado pela prática de falta grave.([xiii])

Há ainda quem defenda a aplicação subsidiária da Lei dos Procedimento Administrativos Disciplinares, por entender que “[n]ão há razão para não aplicação dos princípios e diretrizes da Lei 9.874/99”,([xiv]) devendo-se, desse modo, observar os preceitos dos artigos 2º([xv]) e 50([xvi]) da mencionada Lei. Certo é que nem todos os dispositivos devem ser observados e aplicados, sobretudo porque lida-se, na execução penal, com a liberdade individual, mas acertadamente pontuou o doutrinador quanto à necessária observância de alguns princípios e diretrizes quando garantirem a ampla defesa, o contraditório e a indispensável formalidade do procedimento.

No âmbito administrativo é igualmente assegurado ao sentenciado ser presumidamente inocente do ato ou infração que lhe é imputado;([xvii]) consequentemente, para apontá-lo como autor de uma infração disciplinar, a decisão deve ser clara na exposição dos fatos e fundamentos, congruente, exata, com a prova produzida e suficiente,([xviii]) cf. art. 50, §1º, da Lei 9.784/99, conduzindo à conclusão lógica da existência de provas da materialidade e autoria, não podendo deixar dúvidas sobre sua participação.

Não basta que o acórdão proferido pelo conselho disciplinar descreva a conduta que é imputada, sua previsão legal e a sanção respectiva, é necessário narrar como o colegiado chegou a tal consenso (§3º, do art. 50 da Lei do PAD), ponderando-se os argumentos trazidos pela chefia de segurança do estabelecimento prisional, os fatos e suas circunstâncias, a versão dos envolvidos, a defesa do interno (autodefesa e defesa técnica) e os requisitos do artigo 57 da Lei 7.210/84.

Imperioso destacar que a judicialização do procedimento disciplinar, per se, não torna dispensável a fundamentação administrativa. Nesse sentido o STJ, no HC 347.562/RS, evidenciou ser imprescindível a instauração de procedimento administrativo para apurar a infração disciplinar, mesmo quando o procedimento é realizado em juízo([xix]), ou seja, se a judicialização de todo o procedimento não supre sua falta, a decisão judicial fundamentada não isenta a administração penitenciária de motivar seus atos, sob pena inclusive de ofensa à tripartição dos poderes.

A decisão proferida pelo juiz da execução penal ao receber o procedimento administrativo disciplinar e dispensar a realização da audiência de justificação, não pode acrescentar fatos e fundamentos jurídicos além daqueles delimitados no ato. Deverá analisar se foram cumpridas as normas legais e as garantias constitucionais, e se a fundamentação apresentada respeitou os requisitos de integridade, coerência lógica e correspondência com os dados processuais, que são exigidos para as próprias decisões judiciais,([xx]) restringindo-se à homologação ou não do procedimento. Esse procedimento somente é possível quando o PAD está suficientemente fundamentado.

Sobre essa perspectiva, a decisão de homologação ou não da falta grave deverá analisar o PAD sob a ótica da legalidade e constitucionalidade, não podendo adentrar no mérito dos fatos, sob pena de usurpar a função administrativa conferida pelo artigo 47 da Lei de Execução Penal.

Destarte, notável que essa decisão administrativa pode acarretar efeitos na execução penal do sentenciado, dentre eles a regressão de regime (art. 118, inciso I, da LEP), a interrupção da contagem do prazo para a progressão de regime (Súmula 534, do STJ),([xxi]) a perda de até 1/3 (um terço) dos dias remidos (art. 127, da LEP) e a vedação à concessão de indulto e comutação de penas, medidas estas que contribuem para a manutenção do cidadão no cárcere, mostrando-se indispensável sua suficiente motivação.

Além do mais, partindo da assertiva de que o juiz da execução penal não pode acrescentar ou modificar os fatos narrados no acórdão do conselho disciplinar que apurou a falta grave, não resta outra alternativa senão, diante da ausência de fundamentação ou até mesmo da fundamentação insuficiente, não homologar a sanção por falta grave e determinar a cassação da sanção aplicada ao interno submetido à pena imposta dentro do cárcere, sob pena de incorrer em excesso de execução nos termos do artigo 185 da LEP.

José Flávio Ferrari Roehrig

Bacharel em Direito pela PUCPR. Pós-graduando em Direito Penal e Criminologia pela PUCRS. Assessor de Juiz de Direito de 1º grau do TJPR.

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6593-9014

([i]) “Para o reconhecimento da prática de falta disciplinar no âmbito da execução penal, é imprescindível a instauração de procedimento administrativo pelo diretor do estabelecimento prisional, assegurado o direito de defesa, a ser realizado por advogado constituído ou defensor público nomeado”.

([ii]) ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução penal: teoria crítica. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p 284.

([iii]) “A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição”.

([iv]) RE 398269, Relator(a):  Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, STF, julgado em 15/12/2009, DJe-035. Divulg. 25-02-2010, P. 26/02/2010.

([v]) NUNES, Adeildo. Comentários à lei de execução penal. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 120.

([vi]) SCHIMIDT, Andrei Zenkner. Direitos, deveres e disciplina na execução penal. In: CARVALHO, Salo (org.). Crítica à execução penal: doutrina, jurisprudência e projetos legislativos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 311-312; e MORAES, Márcia Elayne Berbich; TORELLY, Marcelo Dalmás. Disciplina, direito e poder: os processos administrativos disciplinares e suas violações de direitos como estratégias de biopoder na Penitenciária feminina Madre Pelletier. Revista Transdisciplinar de Ciências Penitenciárias, Pelotas, v. 5, n. 1, p. 129-159, jan./dez. 2006.

([vii]) Já há crítica a respeito da tese: “é perigosamente aberta e pode estimular um isolamento e fechamento ainda maior das unidades prisionais e seus sistemas disciplinares, além de fulminar o contraditório no âmbito dos procedimentos administrativos disciplinares”. GIAMBERARDINO, André Ribeiro. Comentários à lei de execução penal. 1. ed. Belo Horizonte: Editora CEI, 2018. p. 114.

([viii]) LOPES JÚNIOR, Aury. A instrumentalidade garantista do processo de execução penal. In: CARVALHO, op. cit.

([ix]) HC 478.649/SC, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, STJ, julgado em 26/02/2019, DJe 15/03/2019.

([x]) CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 28. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 1051.

([xi]) Lei 7.210/84, art. 59, parágrafo único: A decisão será motivada.

([xii]) GOMES FILHO, Antônio Magalhães. A motivação das decisões penais. 1. ed. E-book baseado na 2. ed. impressa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 238.

([xiii]) ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução penal: teoria crítica. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 280.

([xiv]) GIAMBERARDINO, op. cit., p. 113.

([xv]) “A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência”.

([xvi]) “Os atos administrativos deverão ser motivados, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos, quando: I - neguem, limitem ou afetem direitos ou interesses; II - imponham ou agravem deveres, encargos ou sanções; III - decidam processos administrativos de concurso ou seleção pública; IV - dispensem ou declarem a inexigibilidade de processo licitatório; V - decidam recursos administrativos; VI - decorram de reexame de ofício; VII - deixem de aplicar jurisprudência firmada sobre a questão ou discrepem de pareceres, laudos, propostas e relatórios oficiais; VIII - importem anulação, revogação, suspensão ou convalidação de ato administrativo. § 1o A motivação deve ser explícita, clara e congruente, podendo consistir em declaração de concordância  com fundamentos de anteriores pareceres, informações, decisões ou propostas, que, neste caso, serão parte integrante do ato. § 2o Na solução de vários assuntos da mesma natureza, pode ser utilizado meio mecânico que reproduza os fundamentos das decisões, desde que não prejudique direito ou garantia dos interessados. § 3o A motivação das decisões de órgãos colegiados e comissões ou de decisões orais constará da respectiva ata ou de termo escrito”.

([xvii]) ROIG, op. cit., p. 82.

([xviii]) MOREIRA, Rafael Martins Costa. A motivação das decisões administrativas. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 67, ago. 2015. Disponível em: http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao067/Rafael_Moreira.html. Acesso em: 3 abr. 2019.

([xix]) No mesmo sentido os AgRg no HC 342.617/RS e AgRg no AREsp 708.127/RO.

([xx]) GOMES FILHO, op. cit., p. 238.

([xxi]) “A prática de falta grave interrompe a contagem do prazo para a progressão de regime de cumprimento de pena, o qual se reinicia a partir do cometimento dessa infração”.

Aprovado em: 15/06/2019

Versão final: 11/07/2019

Versão final: 11/07/2019

Vitimização corporativa e dependência comunitária na criminologia ambiental: o acerto de contas com os desastres ambientais

Resumo: A partir de novo campo de pesquisa da vitimologia corporativa (Laufer), serão discutidos a fragilidade do sistema de justiça criminal brasileiro frente aos desastres ambientais provocados recentemente pelas mineradoras no Brasil, os dilemas trazidos pela dependência comunitária como nova categoria analítica, os limites do uso estratégico dos direitos humanos para veicular as demandas das vítimas e novas teses emergentes no campo do direito dos desastres. Espera-se com este ensaio a recomendação de agenda científica para a reconstrução social pós-conflito.

Palavras-chave: vitimologia corporativa; comportamento corporativo socialmente danoso; compliance; dependência comunitária; responsabilidade penal da pessoa jurídica.

Abstract: Based on a new field of research, the corporate victimology (Laufer), this essay aims to debate the insufficiency of the Brazilian criminal justice system to face environmental disasters caused recently by mining companies. Then, it stresses the need of a new analytical category, the community dependence, and criticizes the strategic use of human rights to give voice to victim´s needs. At the end, some emerging trends in the field of disasters law are outlined. Within this essay we propose some recommendations for future research on post-conflict social reconstruction.

Keywords: corporate victimology; corporate harmful wrongdoing; compliance; community dependence; corporate criminal liability.

Autor: Eduardo Saad-Diniz

Ao lado da automação tecnológica, a questão ambiental ocupa posição de protagonismo na agenda 2020-2030. Progressistas em todo o mundo empenham a urgência da bandeira do “Green New Deal”, mas, ao que parece, as iniciativas concretas ainda não passam de relatórios sobre a necessidade de priorização política da proteção ambiental. Não há no horizonte políticas regulatórias ou mesmo iniciativas corporativas minimamente convincentes e com algum impacto na redução da devastação ambiental. A sua vez, os penalistas têm se mobilizado na proposição de uma nova modalidade de crime internacional, o ecocídio. A urgência da matéria chegou até o Papa Francisco, sob a forma do “pecado ecológico”.([i])

Se é bem verdade que devemos, para ontem, dar o nosso passo em torno da criminologia do aquecimento global, talvez antes tenhamos que resolver problemas ambientais mais básicos no Brasil. A criminologia brasileira ainda está em dívida com as tragédias ambientais provocadas pela extração de recursos naturais. Falta acertar as contas com o maior desastre ambiental da história brasileira e com o maior impacto ambiental gerado por barragem de rejeitos no planeta.

A extração mineral pode ser das mais agressivas, é orientada basicamente por acordos de segurança corporativa (diferente do setor manufatureiro, por exemplo, em que a maior parte das violações se produz dentro da própria cadeia produtiva), dificultando a identificação e atribuição de responsabilidade.([ii]) Emprega poucas pessoas e deixa ao final um “buraco”[iii]. Ou uma “terra devastada”, com inundações de rejeitos de mineração.([iv])

O enfrentamento judicial da matéria nem bem começou. À parte o contencioso das indenizações, as empresas envolvidas respondem penalmente apenas por crimes ambientais. Mais recentemente, em Ação Popular, decidiu-se que a implementação de programa de compliance seria exigível à Vale para a aquisição de mais uma mineradora, a qual opera justamente em Brumadinho e região, sob o argumento de “imenso desequilíbrio concorrencial que atingiu todo agente econômico de Brumadinho e região”, “por culpa exclusiva da Vale, desprovidos da infraestrutura pública e privada existentes antes do sinistro”([v]). Não há clareza, no entanto, sobre as estratégias do método e das evidências científicas que devem guiar a efetividade desta exigência de compliance. Por mais bem-intencionada que seja a decisão judicial ou por mais decentes que possam ser as iniciativas das empresas envolvidas, a ausência de avaliação científica do programa de compliance incorre no risco da criação de fachada – uso cosmético – de comportamento ético-empresarial, cujo resultado poderia não ser mais do que a mera lavagem da reputação da empresa (greenwashing corporativo)([vi]). A decisão é apenas o começo de um engajamento mais amplo em torno da necessária revisão da governança da exploração dos recursos naturais, desenvolvendo mecanismos cientificamente verificáveis de partilha dos benefícios da atividade empresarial com a comunidade em seu entorno.

Para o exercício do controle social das corporações, o primeiro problema é que o sistema de justiça brasileiro, em especial o criminal, ainda sequer dispõe de instrumentos jurídicos suficientes. Consequência disso, a reação ao rompimento de uma ou duas barragens, na iminência de rompimento de outras tantas, não tem sido acompanhada de respostas minimamente suficientes. Impressiona como se mantém ao longo das décadas no Brasil a resistência à imputação de responsabilidade penal às empresas. A prisão de determinados indivíduos logo após as tragédias apenas atesta o desconhecimento sobre os equívocos históricos da responsabilidade individual. A criminologia corporativa já evidenciou que a atribuição de responsabilidade individual não exerce qualquer impacto em mudança de comportamento ético nas empresas. Isso não funciona se o propósito for mesmo o de integrar os instrumentos jurídicos à política regulatória e redefinir o alcance do controle social da exploração de recursos naturais. Quantas barragens mais devem se romper para abrirmos mão da negação metafísica da responsabilidade penal das empresas?

Há descompromisso por parte da doutrina, que se aproveita das inconsistências do ordenamento jurídico brasileiro, com a limitada previsão de responsabilidade penal da pessoa jurídica reduzida aos delitos ambientais.([vii]) E nem é novidade que as recentes alterações do Projeto Anticrime nem de longe tocam no comportamento corporativo socialmente danoso.([viii]) Chega a ser obsessiva a busca teórica pelas determinantes subjetivas do comportamento empresarial (corporate mens rea). Porém, quanto mais seria necessário para interpretar que a construção de barragens ao mais baixo custo, apesar seu porte, atribuições e poder econômico das mineradoras, produz dano de forma sistematicamente organizada, à indiferença das consequências altamente danosas?

É claro que a solução não pode ser simplista. Desde os anos 70, com Marc Ancel ou Ralph Nader, é verdade que a responsabilidade penal das empresas foi por muito tempo alimentada pelo sentimento anticorporativo. Mas fosse assim, bastaria estender o alcance da responsabilidade penal empresarial e tudo se resolveria magicamente. As lições históricas sobre a matéria são muitas([ix]) e há mais entraves e dificuldades de implementação do que diagnósticos dos efeitos colaterais da responsabilização às empresas.([x]) A incapacitação das políticas públicas e da comunidade local provocadas em função dos desastres ambientais tem alcance maior do que os danos colaterais, daí a necessidade de outras categorias analíticas. No caso dos desastres ambientais em contextos vulneráveis, as mineradoras estão de tal forma imiscuídas nas interações sociais, que geram elevados índices de dependência comunitária.

A compreensão deste cenário é igualmente necessária para o entendimento das necessidades das vítimas, principalmente nas microrregiões dos desastres, e de como este contexto pode influenciar nas relações entre as empresas e as vítimas, e entre o Estado e as empresas, considerando a queda na arrecadação tributária, a elevação do desemprego nas regiões afetadas e a crise econômica pela qual passam os estados. Sem arrecadação, fica subtraída do Estado a capacidade de formulação de políticas públicas ou promoção de práticas restaurativas.

O que se vulnera, portanto, é a capacidade de gestão de crises e de recuperação pós-conflito, gerando dependência da atividade empresarial a partir da qual foi causado o próprio conflito. Significa, que nestes desastres ambientais brasileiros, nem seria o caso de se recorrer a explicações criminológicas sobre neutralização e rotinização da criminalidade empresarial; não há propriamente manipulações ou racionalização de comportamentos que permitam um falseamento da responsabilidade ou estratégia que deixe inoperativo o sistema de justiça criminal.([xi]) O nó górdio da dependência comunitária aqui consiste em compreender como,  apesar da vulnerabilidade e dos intensos processos de vitimização, a continuidade da atividade empresarial – quer dizer, que se mantenham as interações entre ofensor e vítima após a vitimização – siga sendo a opção preferencial para a reconstrução social da vida das pessoas vitimizadas. Foi assim na tragédia de Rana Plaza, quando, em 2013, mais de mil e cem empregados foram fatalmente vitimizados por tragédia em indústria têxtil em Bangladesh; é assim também em Mariana e Brumadinho.([xii])

O acerto de contas com os desastres ambientais demanda novas práticas sociais orientadas pela pesquisa científica em ciências criminais. Uma das mais promissoras estratégias de pesquisa encontra-se no campo da vitimologia corporativa. Originalmente desenvolvido por William Laufer, este campo dedica-se ao estudo das relações entre culpabilidade corporativa, dano e processos de vitimização.([xiii]) No caso dos desastres ambientais, há muito a ser investigado a respeito dos processos de vitimização corporativa. Já a negligência da vítima no processo reflete os entraves para melhoria do regime de informação, participação e inclusão efetiva. Mas a análise dos processos de vitimização corporativa pode oferecer muito mais, especialmente ao determinar como a vitimização provoca desordem e rompe a coesão social nas comunidades pós-desastre. Na verificação empírica do dano social, o mais importante de tudo é demonstrar como a atividade empresarial impacta nas interações sociais, fragilizando as ligações sociais.([xiv]) É a base empírica a partir da qual se podem extrair as recomendações estratégicas de reconstrução pós-conflito e orientar a alocação dos recursos do desastre.

A pauta tem sido recorrente nos estudos de criminologia crítica e é possível observar alguns avanços no campo da “criminologia verde” (Green Criminology).([xv]) A vitimização nos desastres ambientais brasileiros envolve uma grande diversidade de danos, de diferentes intensidades, a variadas vítimas, em vasta extensão geográfica. Muitas das comunidades afetadas possuíam fortes vínculos de territorialidade e tradições, que foram profundamente impactados pelos rejeitos. Em suas múltiplas dimensões, o dano é de difícil diagnóstico e a mensuração envolve custos sociais, morais e psicológicos às vítimas. Na resolução dos conflitos, surgem diferentes demandas por localidades, o que impossibilita o oferecimento de uma resposta jurídica satisfatória e válida universalmente a todas as vítimas. São também diversos os atores envolvidos no tratamento judicial e extrajudicial do desastre, o que pode resultar na dispersão de informação e na dificuldade de articulação entre as instâncias públicas, organizações civis e empresas privadas envolvidas.([xvi])

É esta a medida da reconstrução social pós-conflito, não apenas conferindo-lhe eficiência à alocação de recursos de desastre, mas contribuindo com eficácia para a consolidação de uma mentalidade de crise, coordenação robusta de esforços públicos e privados, e consistente capacidade para implementação de políticas públicas e iniciativas corporativas de restauração.([xvii]) Há uma série de avanços na vitimologia ambiental, que poderiam auxiliar na compreensão da extraordinária diversidade de danos, de diferentes intensidades, causados a uma heterogeneidade de vítimas. No campo das emoções, exige-se capacitação multiprofissional e interdisciplinar para o estudo do impacto dos desastres no desenvolvimento da personalidade, somada de preparação específica para o trato com as vítimas na restauração após a tragédia, para além da mera negociação de compensações financeiras. Novas tecnologias podem ser incorporadas como forma de preservação das redes sociais e facilitação de parcerias estratégicas com o setor privado para a promoção de crowd-source governance.([xviii])

Diante de tantas dificuldades de implementação de práticas sociais que possam dar conta da vitimização corporativa, têm sido muito explorados possíveis vínculos entre atividade empresarial e violação de direitos humanos. É assim desde a vitimologia crítica nos anos 80, valendo-se tanto do potencial político dos direitos humanos para dar voz às vítimas quanto de uma boa dose de pragmatismo para levar estas demandas à apreciação dos tribunais. Este recurso aos direitos humanos tem se concretizado sob a forma da imposição de deveres positivos aos Estados para proteção contra violações de direitos humanos no âmbito empresarial. Tanto assim é que recentemente o Conselho Nacional dos Direitos Humanos publicou a Resolução 14/2019, na qual se qualificam os crimes ocorridos em Mariana e na Bacia do Rio Doce como violações a direitos humanos de excepcional gravidade. Esta Resolução reflete, em verdade, tendência internacional no reconhecimento da gestão de desastres como direito humano, baseada no reforço do dever positivo de manter política regulatória em relação a risco de desastres e na condição de ameaça ao direito à vida.([xix])

Apesar disso, a normativização das relações entre empresa e direitos humanos tem apresentado baixo rendimento. Opera-se em campo simbólico, sem maior expressão concreta. E não é por acaso que o Decreto Federal 9.571/2018 é solenemente ignorado no Brasil. A profusão de normativas no mundo todo inspiradas pelos Princípios Ruggie tampouco tem motivado alguma mudança substancial. Tudo indica que há excesso de expectativas em relação a um tratado internacional, que permita a atribuição de responsabilidade penal a empresas por violação a direitos humanos.  

Em relação ao setor privado, os esforços deveriam se concentrar no desenvolvimento de estratégias para o uso de recursos para a reconstrução pós-conflito. Até o momento, no entanto, convivemos com lamentável vácuo de iniciativas. O debate científico, a seu modo, tampouco tem acrescentado soluções inovadoras. A orientação da atividade empresarial a partir da teoria dos stakeholders, mesmo sendo ao menos em tese mais humanizada do que a maximização do valor dos shareholders, também é por si bastante simplista. Apenas para iniciar o debate, é bem possível abrir-se moralmente aos stakeholders e seguir com comportamento corporativo socialmente danoso. A autoconstitucionalização voltada a direitos humanos não escapa a sua própria instrumentalização, seja como estratégia de negócios a partir de retórica dos direitos humanos, ([xx]) seja para justificação moral à comissão de infrações econômicas. Pior ainda, é considerável o risco de overcompliance, a partir do qual os custos de transação impostos pela implementação de programas de compliance podem acabar impedindo que mineradoras menores e, em muitos casos, mais sustentáveis, posicionem-se no mercado.([xxi])

O diálogo que se pretende com o setor privado é outro. Espera-se que sustentabilidade não se reduza a mero expediente para acomodar interesses de segurança econômica. Para além da retórica vazia sobre integridade, que predomina na indústria de compliance, o desafio consiste na formulação de estratégias para utilização dos recursos de compliance submetidas ao crivo da avaliação científica e orientadas para a reconstrução de resiliência e sustentabilidade pós-conflito.

Há uma série de desdobramentos relevantes no que se convencionou “direito dos desastres” (disasters law), diferenciando as catástrofes naturais, desastres causados por decisões humanas e eventos terroristas de larga escala. Apesar de sua importância, quando a matéria é a reconstrução social pós-conflito, a maioria dos estudos encontra-se limitada a ideações sobre compensação financeira, acordos e metas.

A elaboração de uma interação construtiva entre a ideia de justiça centrada na comunidade (community-based justice) e os regimes corporativos (corporate regimes), embora teoricamente fascinante, segue sendo pouco realista. Sob a resolução metodológica da compreensão e explicação dos processos de vitimização, do dano, das respostas jurídicas e da reconstrução social pós-conflito nos desastres ambientais brasileiros, talvez se possa fornecer os fundamentos para o necessário acerto de contas com a desgovernança na exploração de recursos naturais. Mas ainda nem começamos este debate.

Eduardo Saad-Diniz

Professor da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto e do Programa de Integração da América Latina da USP (FDRP/PROLAM/USP).

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1214-8753

([i]) NIETO MARTÍN, Adán; DOPICO, Jacobo; ARROYO ZAPATERO, Luis. “Ecocidio”. El País, 12.12.2019. Disponível em: <https://www.iustel.com/diario_del_derecho/noticia.asp?ref_iustel=1193512>. Na discussão do ecocídio, além da apreciação crítica da experiência com o genocídio, caberiam apreciações complementares sobre problemas institucionais e relações de poder no âmbito penal internacional. Não cabe na delimitação deste texto a avaliação crítica da relação entre moral teológica e sistema jurídico-penal. Para a Audiência do Papa Francisco com a Associação Internacional de Direito Penal (15.11.2019), cf. <https://www.youtube.com/watch?v=z1FNx63no4s&t=826s>. Acesso em: 15 jan. 2020.

([ii]) KAEB, Caroline. Emerging issues of Human Rights Responsibility in the extractive and manufacturing industries: patterns and liability risks. Northwestern Journal of International Human Rights, v. 6, n. 2, p. /2008, p. 343-344. Disponível em: <https://scholarlycommons.law.northwestern.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1076&context=njihr>.

([iii]) As lições da experiência africana são as mais representativas do potencial danoso das mineradoras, aludindo ao “buraco” que resta ao final da exploração mineira. LANNING, Greg; MUELLER, Marti. Africa Undermined: mining companies and the underdevelopment of Africa. Middlesex: Penguin, 1979, p. 23-24.

([iv]) MASCARO, Cristiano; MASCARO, Pedro. A Terra devastada: as marcas da tragédia sete meses depois. Revista Piauí, São Paulo, n. 118, jul./2016. Disponível em: <https://piaui.folha.uol.com.br/materia/a-terra-devastada/>. Acesso em: 15 jan. 2019.

([v]) Ação Popular n. 1015425-06.2019.4.01.3400, 5ª Vara da Justiça Federal/DF.

([vi]) LAUFER, William. Social accountability and corporate greenwashing. Journal of Business Ethics, v. 43, n. 3, p. 253-261, 2003. A discussão da evidence-based compliance, a partir das ideias criminológicas em LAUFER, William. The missing account of Progressive Corporate Criminal Law. New York University Journal of Law and Business, v. 14, n. 1, p. 01-60, 2017. Para a inclusão da gestão de crises como tecnologia de compliance, SAAD-DINIZ, Eduardo. Ética negocial e compliance. São Paulo: RT, 2019, p. 191 e ss.

([vii]) Ainda mais delicada é a crença na capacidade de solução administrativa do conflito. Sem falar no alto preço que seguimos pagando pelo ranço e imposição de moralidade abstrata próprias do modelo administrativo brasileiro, que não dispõe de regime sancionador unitário. BARRILARI discute os problemas da descentralização e indica uma série de relações jurídicas em que garantias e princípios são negligenciados pelo direito administrativo sancionador brasileiro. BARRILARI, Claudia. Crime empresarial, autorregulação e compliance. São Paulo: RT, 2018, p. 50.

([viii]) Mais sobre o tema em SAAD-DINIZ, Eduardo. “Projeto Anticrime Corporativo: a reforma da responsabilidade penal da pessoa jurídica que não veio” (pesquisa em andamento).

([ix]) É muito inteligente a crítica em KHANNA, Vik. Corporate criminal liabilty: what purpose does it serve? Harvard Law Review, v. 5, p. 1477-1534, 1996. De forma igualmente inteligente e percepção bem realistas das coisas, Michael Kubiciel aponta que as empresas alemãs passam a sofrer prejuízos no seu ambiente regulatório. KUBICIEL, Michael. “Die deutschen Unternehmensgeldbussen: ein nicht wettbewerbsfähiges Modell und seine Alternativen”. Neue Zeitschrift für Wirtschafts-, Steuer-, und Unternehmensstrafrecht, 5/2016, p. 178-181.

([x]) MARKOFF, Gabriel. Arthur Andersen and the myth of corporate death penalty: corporate criminal convictions in the Twenty-First Century. University of Pennsylvania Journal of Business and Law, v. 15, n. 3, p. 797-842, 2012. THOMAS, Robert. Incapacitating criminal corporations. Vanderbilt Law Review, v. 72, n.3, p. 908-972, 2019.

([xi]) Em profundidade, BARAK, Gregg. Unchecked corporate power:  why the crimes of multinational corporations are routinized away and what we can do about it. London: Routledge, 2017; KARIDIO, Ismael; TALBOT, David. Controversy in mining development: a study of the defensive strategies of a mining company. Journal of Sustainable Finance & Investment, v. 10, n. 1, p. 18-43, 2020.

([xii]) SAAD-DINIZ, Eduardo. Vitimologia corporativa. São Paulo: Tirant, 2019, p. 168 e ss.

([xiii]) LAUFER, William., op. cit., p. 7 e ss.; SAAD-DINIZ, Eduardo., op. cit., p. 139 e ss.

([xiv]) ADAMS, Richard; SERPE, Richard. Social integration, fear of crime, and life satisfaction. Sociological Perspectives, v. 43, n. 4, dez./2000, p. 605-629.

([xv]) HILLYARD, Paddy et al (org). Beyond criminology: taking harm seriously. Winnipeg: Fernwoodbooks,

2004, p. 10-30.; WHITE, Rob. Crimes against nature: environmental criminology and ecological justice. London: Willan, 2008; mais sobre possíveis convergências, SOLLUND, Ragnhild Aslaug. Green harms and crimes: critical criminology in a changing world. London: Palgrave, 2015. 

([xvi]) PRATA, Daniela A. Criminalidade corporativa e vitimização ambiental: análise do caso Samarco. São Paulo: LiberArs, 2019, p. 3 e ss.

([xvii]) NIETO MARTÍN, Adán. Empresas, víctimas y sanciones restaurativas: como configurar un sistema de sanciones pensando en sus víctimas?. SAAD-DINIZ, Eduardo et al (org) Corrupção, direitos humanos e empresa. Belo Horizonte: D´Plácido, 2018, p. 37-52.

([xviii]) ALI, Shahla. Governing disasters. Cambridge: Cambridge Press, 2013, p. 229-240.

([xix]) No caso Öneryildiz v Turkey, ECHR/2004, fundamentou-se a falta de medidas apropriadas para a prevenção do acidente, como violação do dever positivo decorrente da proteção do direito à vida (Art. 2 da Convenção Europeia de Direitos Humanos). A juridificação da gestão de desastres levou à acomodação do direito do desastre como direito humano. LAUTA, Kristian. Disaster Law. London: Routledge, 2015, p. 76-80.

([xx]) TEUBNER, Günther. Self-constitutinalizing TNCs? On the linkage of ‘private’ and ‘public’ corporate codes of conduct. Indiana Journal of Global Legal Studies, v. 64, n. 2-3, 617-638, 2011.

([xxi]) RORIE, Melissa. An integrated theory of corporate environmental compliance and overcompliance. Crime, Law and Social Change, 64, p. 65-108, jan./2016.

Recebido em: 14/01/2020

Aprovado em: 14/01/2020 

Versão final: 16/01/2020

Privatização das prisões: direções opostas na penalidade neoliberal

Resumo: O artigo analisa os movimentos contemporâneos da política de privatização das prisões no Brasil e Estados Unidos, especialmente representados pelos Estados de São Paulo e da Califórnia, que caminham em direções opostas quanto à adoção da medida: São Paulo empreende os primeiros passos para a implementação, enquanto a Califórnia encerra sua política de privatização prisional.

Palavras-chave: Privatização de presídios. Neoliberalismo. Encarceramento em massa. Política criminal. Prisões.

Abstract: The article analyzes the contemporary movements of the prisons privatization policy in Brazil and the United States, especially represented by the states of São Paulo and California, which go in opposite directions regarding the adoption of the measure: São Paulo undertakes the first steps for the implementation, while California terminates its prison privatization policy.

Keywords: Prison privatization. Neoliberalism. Mass incarceration. Criminal policy. Prisons.

Uma das questões de destaque na penalidade neoliberal, a privatização das prisões, segue na ordem do dia. Em setembro de 2019, em um intervalo de apenas cinco dias, duas medidas foram tomadas em Estados centrais no grande encarceramento de seus respectivos países: no dia 6, São Paulo iniciou seu processo de privatização de presídios, com o lançamento de edital para construção de quatro unidades prisionais; no dia 11, a Califórnia aprovou uma lei que encerra a privatização das suas prisões, sancionada pelo governador um mês depois, em 11 de outubro de 2019.

Estado com a maior população dos Estados Unidos da América, a Califórnia tem a segunda maior população prisional do país, com 202.700 presos, cerca de 15.000 a menos que o Texas.([i]) Os dois Estados economicamente mais importantes também foram as locomotivas do encarceramento em massa estadunidense, que hoje conta com a maior população prisional do mundo: mais de 2 milhões de pessoas encarceradas.

O avanço do controle social punitivo nos Estados Unidos da América não só coincidiu com a implantação do neoliberalismo, como foi parte constitutiva da política criminal desse modelo socioeconômico de Estado. À redução das prestações estatais no campo das políticas sociais, correspondeu uma ampliação do seu braço punitivo, materializada em um vasto processo de gestão da pobreza([ii]) com nítido corte racial.([iii])  Dentre as diversas dores do encarceramento em massa,([iv]) destacou-se a toda evidência a superlotação dos presídios e a piora das condições do aprisionamento.

Na lógica da penalidade neoliberal, era de se esperar como resposta ao problema posto, a proposição de uma política de retração de gastos públicos: diante da superlotação dos presídios e das mazelas que dele decorrem, em 1983, foram iniciadas as obras da primeira prisão privada dos Estados Unidos, no Tennessee. Desde então, tal política penitenciária se espalhou pelo país e atualmente abriga 7,8% da população prisional norte-americana, totalizando 113.791 presos. Desde 2000, as prisões privadas cresceram 39,3%, chegando a 479% no Arizona,([v]) mas tal expansão não se deu sem a devida crítica em relação aos seus resultados político criminais.

Com efeito, para além da privatização de uma função essencialmente pública, os resultados esperados não só foram reversos aos propostos, como ultrapassaram os muros das prisões. Dos objetivos eleitos, o lucro das empresas foi de fato alcançado. Anunciado como uma “nova fronteira” de investimentos em Wall Street no final dos anos 1980, em meados da década seguinte a Corrections Corporartion of America estava entre as cinco empresas mais lucrativas do país.([vi]) Todavia, como política penitenciária, o modelo privado não tardou a entrar em crise.

Se de início implementou-se uma ou outra unidade prisional “modelo” para servir de plataforma política do populismo penal da vez, a consolidação da política trouxe consequências desastrosas. É possível destacar dois aspectos, que foram especialmente influenciados pelo anseio lucrativo. De um lado, as prisões privadas foram submetidas a um regime de austeridade carcerária para redução dos custos de funcionamento, seja pela transferência de despesas do encarceramento aos familiares e aos próprios presos, seja pelo corte de toda sorte de direitos da população prisional, notadamente aqueles de cunho prestacional.([vii]) O rebaixamento das condições de vida nas prisões foi o modus operandi da gestão privada penitenciária, que moldou suas práticas na anulação dos direitos mais básicos da população carcerária. A consequência concreta do apelo ao setor privado foi a expressiva deterioração das condições materiais de aprisionamento, a tal ponto de estarem as prisões privadas entre as piores dos Estados Unidos.

Por outro lado, a conversão da pessoa presa em mercadoria insere o sistema de justiça criminal na dinâmica do mercado, de modo que os interesses privados passam a influenciar de maneira mais decisiva e direta a seara da política criminal. Aos empresários do ramo interessa um progressivo endurecimento penal, a fim de que sua fonte de lucro não falte. No plano concreto, as empresas do ramo passaram a exercer um lobby concreto por leis penais mais duras, que representassem um número ainda maior de presos e o cumprimento de penas mais longas. Movimento semelhante foi realizado no campo do controle de imigrantes, já que essas empresas também se dedicam ao mercado dos centros de controle de imigrantes.([viii])

Apontada como solução para os problemas que decorreram do processo de encarceramento em massa estadunidense, a privatização das prisões não só proporcionou um rebaixamento das condições de vida no cárcere, como fomentou o mesmo movimento que a inaugurou como política penitenciária: de remédio, passou a combustível do grande encarceramento.

Questão quase invisível ao grande público nos Estados Unidos da América até cerca de quinze anos atrás, o encarceramento em massa passou a ser debatido publicamente diante dos seus índices extraordinários e das suas consequências sociais cada vez mais danosas.([ix]) Tema constante no debate político e eleitoral, motor de mobilizações sociais – notadamente do movimento negro -, e pauta midiática de relevo, o aprisionamento massivo tem sido avaliado não só no campo acadêmico, no qual tem vasta produção teórica.

Na esfera judicial igualmente resvalaram algumas de suas consequências. É paradigmática, nesse sentido, a decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos que, em 2011, no caso Brown v. Plata, determinou que o Estado da Califórnia reduzisse sua população prisional ao limite de 137,5% da sua capacidade oficial como forma de remediar a violação de direitos constitucionais decorrentes da superlotação.([x]) A Califórnia, com efeito, é o centro das discussões sobre o encarceramento em massa nos Estados Unidos da América, em seu “papel tradicional de farol e bússola que apontam a direção a seguir pelo resto do país.”([xi])

A avaliação negativa sobre os efeitos do encarceramento em massa identificou o nefasto papel das prisões privadas nas dinâmicas da política criminal e penitenciária. Na esteira desse movimento, foi aprovada na Califórnia a lei AB32, que alterou o Código Penal local para proibir, a partir de 1º de janeiro de 2020, a celebração de novo contrato – ou a renovação de contrato existente – do Departamento Penitenciário com prisão privada com fins lucrativos. A lei, que engloba os centros de detenção de imigrantes, excepciona apenas a renovação desse tipo de contrato em razão de decisão judicial sobre limite de população prisional. A lei impõe ainda, que após 1º de janeiro de 2028 nenhuma pessoa deve estar presa em estabelecimento privado.([xii])

Não se trata de medida isolada. Em maio de 2019, o Estado de Nevada aprovou lei em semelhante sentido – AB183 -, cuja proibição valerá a partir de 1º de julho de 2022.([xiii]) No mês seguinte, o Estado do Illinois também aprovou lei sobre a matéria, a HB2040, na qual ficou expresso que “a administração e operação de qualquer estabelecimento de detenção envolve funções, que são inerentemente governamentais” e que “a detenção requer o exercício de ações coercitivas, poderes policiais sobre indivíduos, que não devem ser delegados a setor privado”, sendo “diferente da privatização em outras áreas do governo.”([xiv]) Por sua vez, o Senado de Nova York aprovou a S433A, que proíbe as instituições bancárias estatais de investirem e fornecerem financiamento para prisões privadas. O projeto ainda carece de aprovação da outra Casa Legislativa e do Governador do Estado.([xv])

No laboratório das experiências do encarceramento em massa, a avaliação é de fracasso das prisões privadas, o que motivou um verdadeiro movimento - com medidas concretas - para o banimento de tal política penitenciária. Se referido movimento por si só não é capaz de reverter o grande encarceramento estadunidense, ao menos contraria a lógica de sua promoção.

Na contramão da experiência norte-americana, que paradoxalmente é utilizada discursivamente como exemplo, a adoção das prisões privadas avança no Brasil. Na curta experiência brasileira de privatização prisional, o país inteiro testemunhou verdadeiros massacres no Complexo de Pedrinhas, no Maranhão, em 2013, e em Manaus, em 2017 e 2019.

No último mês de setembro, a “locomotiva” do encarceramento em massa brasileiro construiu os primeiros trilhos de uma ferrovia que se destina ao desastre. Com mais de um terço da população prisional brasileira, São Paulo pretende alimentar uma política penitenciária que se mostrou na experiência estadunidense fracassada em todos os seus objetivos, salvo o de gerar lucro ao setor privado. Não bastassem a dor e sofrimento causados pelo aprisionamento massivo brasileiro, o fomento à privatização prisional não só intensifica tais efeitos, como o faz por meio da sua mercantilização. Em um dos países mais desiguais do mundo, o enriquecimento por meio de um mecanismo reprodutor de desigualdade, o aprisionamento, expõe os limites da irracionalidade punitiva. Nesse sentido, a partir da experiência norte americana, Donna Selman e Paul Leighton apontaram, que “as prisões privadas pegaram dinheiro dos ricos para construir prisões para prender cidadãos pobres e desproporcionalmente minoritários, dando aos ricos a oportunidade de ficarem mais ricos com os pobres que ficam presos.”([xvi])

A privatização das prisões é mais uma medida que se adota com algum atraso e escassa reflexão. O processo de encarceramento em massa estadunidense, que antecedeu o nosso, já proporcionava reflexões críticas, que foram ignoradas ao trilharmos semelhante caminho. Uma vez mais a experiência histórica nos revela, se não a estrada a percorrer, ao menos que um dos destinos nos levará ao fracasso. É o aviso do tempo presente. Ele está passando na janela, mas Carolina parece não querer ver.

Patrick Cacicedo

Doutor e mestre em Direito Penal pela USP. Defensor Público do Estado de São Paulo.

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5623-8224

([i]) Dados de 2017 do Bureau of Justice Statistics. Disponível em:  <https://www.bjs.gov/index.cfm?tid =11&ty=tp.>. Acesso em: 07 dez. 2019.

([ii]) Cf. WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos [A onda punitiva]. 3. ed. Trad. Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2019; EDELMAN, Peter. Not a crime to be poor: the criminalization of poverty in America. New York: The New Press, 2017.

([iii]) Cf. ALEXANDER, Michelle. A nova segregação. Racismo e encarceramento em massa. Trad. Pedro Davoglio. São Paulo: Boitempo, 2017; TONRY, Michael. Punishing race: a continuing American dilemma. Oxford: Oxford University Press, 2011; PAGER, Devah. Marked: Race, crime, and finding work in an era of mass incarceration. Chicago: The University of Chicago Press, 2003.

([iv]) Cf. FLEURY-STEINER, Benjamin; LONGAZEL, Jamie. The pains of mass imprisonment. New York: Routledge, 2014.

([v]) Dados disponíveis em: <https://www.sentencingproject.org/publications/private-prisons-united-states/>. Acesso em: 07 dez. 2019.

([vi]) WACQUANT, Loïc., op. cit., p. 286-287.

[vii] WACQUANT, Loïc., op. cit., p. 294-295.

[viii] Sobre a criminalização dos imigrantes, cf. GOTTSCHALK, Marie. Caught: the prison state and the lockdown of American politics. Princeton: Princeton University Press, 2015, p. 215 e ss.

[ix] Ibid, p. 1.

([x]) Para uma análise desse e outros casos, cf. SIMON, Jonathan. Mass incarceration on trial: a remarkable court decision and the future of prisons in America. New York: The New Press, 2014.

([xi]) WACQUANT, Loïc., op. cit., p. 268.

([xii]) Disponível em: <https://leginfo.legislature.ca.gov/faces/billTextClient.xhtml?bill_id= 201920200AB32>. Acesso em: 07 dez. 2019.

([xiii]) Disponível em: <https://www.leg.state.nv.us/App/NELIS/REL/80th2019/Bill/6286/Overview>. Acesso em: 07 dez. 2019.

([xiv]) Disponível em: <http://www.ilga.gov/legislation/publicacts/fulltext.asp?Name=101-0020>. Acesso em: 07 dez. 2019.

([xv]) Disponível em: <https://www.nysenate.gov/legislation/bills/2019/s5433>. Acesso em: 07 dez. 2019.

([xvi]) SELMAN, Donna; LEIGHTON, Paul. Punishment for sale: private prisons, big business and incarceration binge. Mariland: Rowman & Littlefield Publishers, 2010, p. 4. Tradução livre.

 Recebido em: 09/12/2019

Aprovado em: 09/12/2019

Versão final: 17/01/2020

A adoção de programas de criminal compliance em acordos de colaboração premiada como ferramenta de enforcement

Resumo: Este artigo apresenta a utilização de programas de compliance em acordos de colaboração premiada como mecanismo de enformecement das leis penais, em especial da lei Anticorrupção. O uso dos programas como requisito à obtenção dos benefícios do acordo aos colaboradores ainda é novo no ordenamento nacional, mas já demonstra ser um bom instrumento para modificação, em delitos empresariais, de um modelo preponderantemente repressivo de justiça penal para um modelo preventivo.

Palavras-chave: Compliance. Colaboração premiada. Enforcement.

Abstract: This article presents the use of compliance programs in award-winning collaboration agreements as a mechanism for enforcing criminal laws, especially the Anti-Corruption Act. The use of the programs as an enforceable measure against defendants is still new in the national legal system, but it is already proving to be a good instrument for changing from a repressive paradigm to a preventive model in corporate crimes.

Keywords: Compliance. Award-winning collaboration. Enforcement.

Autor: Anna Carolina Faraco Lamy e Décio Franco David

Seguindo a lógica de influência do modelo norte-americano em todos os ramos da vida social e econômica,([i]) o Direito - e, por conseguinte, o Direito Penal - acaba por adotar e seguir padrões de normatização estrangeira. Pode-se reconhecer a influência direta de padrões e sistemas internacionais na utilização de instrumentos dogmáticos materiais e processuais, como os acordos de leniência e de colaboração premiada (plea bargain), responsabilização penal de pessoas jurídicas, programas de compliance e canais de denúncia (whistleblower). Dada a delimitação temática deste trabalho, destaca-se, resumidamente, que um “programa de compliance visa estabelecer mecanismos e procedimentos que tornem o cumprimento da legislação parte da cultura corporativa”.([ii]) Essa é a mudança paradigmática preventiva que chama a atuação do sistema jurídico em sua integralidade.([iii])

Essa nova perspectiva direcionada à prevenção das atividades delitivas reflete sobre todo tipo de mecanismos importados à dogmática nacional, notadamente quando se fala de instrumentos premiais,([iv]) conforme se verifica expressamente no art. 4º, III, da Lei 12.850/2013. Com isso, é inegável que a colaboração premiada ou o acordo de leniência podem servir de ferramentas ao enforcement da lei,([v]) à medida que, nas duas modalidades de acordo, pode estar previsto como requisito de cumprimento do acordo a implantação de programa de compliance anticorrupção.

É com esse ideário preventivo e de adoção de uma padronização ética de gestão empresarial coorporativa e de responsabilidade social, que ocorre a principal imbricação entre os dois instrumentos, notadamente pelas determinações constitucionais, que autorizam o Estado a intervir diretamente em atividades econômicas para garantir um desenvolvimento mais adequado às finalidades e objetivos estatais traçados na própria carta constitucional.([vi])

Embora a temática da colaboração premiada não seja uma pauta tão nova na doutrina brasileira,([vii]) parece que, com o advento da Operação Lava-Jato e o seu uso mais recorrente pelos atores processuais penais, a sua utilização como eventual ferramenta a serviço do sistema jurídico brasileiro acabou sendo fortalecida.

Paralelamente, é inegável que o conteúdo ético da premiação do colaborador deve ser tema de reflexão([viii]) – inclusive, destaca-se que os críticos indicam que se trataria de prova obtida em caráter fraudulento e sigiloso –, de modo que o delatado não toma conhecimento do que foi alegado contra si, restando, assim, prejudicado o exercício do contraditório. Devendo-se consignar, nesse sentido, o entendimento do STF de que os coautores delatados não podem impugnar o conteúdo do acordo formatado com o colaborador (HC 127.483/PR), dando a ele caráter praticamente imutável, posicionamento que acaba fazendo eco à crítica quanto à situação de fragilidade que o delatado encontra em razão do valor atribuído à fala do delator.

Porém, e mesmo em face da relevância e da pertinência da crítica apontada, além de inúmeras outras questões que aqui não cabem ser trazidas, parece ser igualmente importante pensar o instituto a partir de uma ótica pragmática – já que seu uso foi autorizado pelo Supremo Tribunal Federal – até para que possa ser aprimorado, no intuito de se aproximar o máximo possível do ideal constitucional que se almeja em um processo penal democrático. Afinal, o processo penal, enquanto “caminho necessário para a pena”([ix]), é, como bem pondera Claus Roxin, um sismógrafo da Constituição.([x]) Disso decorre a necessidade de respeito máximo às garantias penais e processuais penais não apenas nos acordos a serem celebrados, mas, igualmente, em determinações e regras próprias de programas de compliance.

A partir deste recorte, este trabalho insta adentrar na essência do que se visa tratar, que diz respeito ao uso de cláusulas impositivas de programas de compliance em colaborações premiadas como ferramenta de enforcement da lei, na medida em que os acordos contenham cláusulas preceptivas de que a implantação de programa de compliance criminal seja requisito para eficácia do acordo.

Já que os termos do acordo são livres, devendo apenas seguir a legalidade, a proposta pelo Ministério Público de que a implantação de um programa efetivo sirva como fator de diminuição de pena ou obtenção de outros benefícios parece um bom caminho à utilização do compliance como mecanismo de controle da criminalidade empresarial.

Obviamente o programa instituído deve ser efetivo, conforme dispõe o art. 41 e seguintes do Decreto 8.420/2015, estabelecendo-se parâmetros que serão avaliados pelo próprio MP, já que cabe a ele a imputação originária e as tratativas a culminar na celebração do acordo –  e quiçá por terceiro, que dê neutralidade à efetividade dos controles implementados (pois o Ministério Público é parte na ação em que se propõe o acordo).

Essa prática, que é bastante comum no sistema jurídico norte-americano, ([xi]) pode se configurar como um novo paradigma de implementação de propostas verdadeiramente preventivas e de efeito a longo e médio prazos contra a criminalidade econômica.

Com efeito, independentemente da polêmica que gravita ao entorno do instituto da colaboração premiada no Brasil, parece ser ela uma boa ferramenta de confirmação do compliance, já havendo registro de acordos de colaboração – e de leniência([xii]) – celebrados no âmbito da Operação Lava-Jato em que a implementação de programa de compliance foi prevista como requisito de cumprimento e obtenção dos benefícios advindos da avença.

Nesse passo, no acordo firmado entre Ministério Público Federal e o acusado/colaborador Ricardo Ribeiro Pessoa([xiii]) ficou estabelecido que: “i) Imediatamente após o início de cumprimento da pena, o COLABORADOR deverá dar ciência de sua injunção gerencial para a implementação e a evolução do programa de compliance e governança na gestão empresarial das pessoas jurídicas UTC/CONSTRAN e subsidiárias, devidamente fiscalizado por empresa independente de auditoria externa semestral, com acompanhamento e comunicação ao Juízo e ao Ministério Público Federal, durante o período de cumprimento da pena estabelecida na letra ‘c’”.

Denota-se que o referido acordo previu a implantação de programa de compliance na empresa do colaborador e subsidiárias visando alterar a estrutura da empresa, com o propósito de evitar reiterações da conduta tida como ilegal e apurada nos autos em que se celebrou o alusivo acordo.

Importante destacar que, no aludido caso, o MP acabou atuando como verdadeiro porta-voz dos programas de integridade, dando enforcement à lei anticorrupção, na medida em que a implantação efetiva de controles internos e de políticas de conformidade são condições à obtenção dos benefícios almejados pelo colaborador. Além disso, objetivando preservar a devida equidistância necessária para realizar avaliação de efetividade do programa, restou acordado que a fiscalização do programa de compliance a ser implementado deve ser feita por empresa independente de auditoria, garantindo maior credibilidade da análise a ser realizada, haja vista que a fiscalização pode depender de visões especializadas em outras áreas do conhecimento (como contabilidade e administração), o que não seria adequadamente averiguado por um jurista – neste caso, membros do Ministério Público Federal.

Logo, parece ser possível propor que a implantação de programa efetivo de compliance, cuja qualidade será avaliada e fiscalizada pelo MP – mas também por auditorias independentes, que, em princípio, tenham uma visão mais isenta –, possa servir como ferramenta de enforcement normativo (Lei Anticorrupção, Leis penais, etc.), ao passo em que provoca uma alteração na essência da empresa e utiliza, como ensejo, o interesse do colaborador em evitar o cumprimento da pena – que naturalmente decorreria da sua conduta ilícita – ou, no mínimo, a atenuação da punição, seguindo, mais uma vez, o modelo estrangeiro de deferred prosecution agreements e non-prosecution agreements – não apenas pelas benesses do acordo em si, mas, também, pela forma de assimilação do conteúdo normativo a partir de um paradigma de cumprimento das normas (enforcement).([xiv]) Como bem destaca Gimeno Beviá, os deferred prosecution e non-prosecution agreements têm como característica basilar a revisão e ajuste dos programas de compliance, assim como a contratação de supervisores externos especializados em programas de integridade.([xv])

Assim, a colaboração premiada demonstra ser um terreno fértil ao desenvolvimento do compliance, uma vez que os acusados que se propõem a firmar o acordo estão interessados em evitar a concretização da pena prevista ao ilícito imputado. Como o colaborador sabe que o não-cumprimento dos requisitos previstos acarreta a perda dos benefícios que almeja, caso não leve a sério a implantação de programa efetivo de compliance, ele pode acabar tendo de cumprir a pena corporal integralmente, substituída ou atenuada por força do acordo.

Por outro lado, é preciso reconhecer que a delimitação de um programa de compliance não é algo verdadeiramente novo, uma vez que todos têm o dever de agir em conformidade com as normas que integram o ordenamento jurídico,([xvi]) mas a sua imposição em acordos de colaboração premiada reforça a mudança de paradigma de atuação jurídica tradicionalmente alocada em um espaço contencioso para o campo preventivo e, por conseguinte, reforça-se o enforcement normativo.

Anna Carolina Faraco Lamy

Doutora em Direito pela UFPR. Consultora em Compliance. Advogada.

ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9427-7315


Décio Franco David

Doutor em Ciência Jurídica pela UENP. Professor de Direito Penal da FAE Centro Universitário. Presidente do Conselho Estadual do Paraná da Associação Nacional da Advocacia Criminal. Advogado.

ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7284-3910

([i]) Essa influência tem sido reconhecida como uma nova forma de imperialismo, conforme bem explica MESZÁROS, István. O século XXI: socialismo ou barbárie? São Paulo: Boitempo, 2012, p. 11 e 50.

([ii]) MENDES, Francisco Schertel; CARVALHO, Vinícius Marques de. Compliance: concorrência e combate à corrupção, São Paulo: Trevisan Editora, 2017, p. 31.

([iii]) Com razão, Paulo César Busato afirma que: “Não se pode pensar, naturalmente, que o cenário das atividades empresariais cotidianas possa simplesmente desprezar as questões relativas ao sistema de compliace ao debruçar-se sobre temas de matéria penal” (2017, p. 49). BUSATO, Paulo César. O que não se diz sobre compliance em Direito penal. In: BUSATO, Paulo César; COUTINHO, Aldacy Rachid. (Org.). Aspectos jurídicos do compliance. Florianópolis: Empório do Direito, 2017.

([iv]) Conforme afirmam Sérgio Salomão Shecaira e Pedro Luiz Bueno de Andrade: “Tais programas intraempresariais prevêem exercícios permanentes de diligências para detectar condutas delitivas; promoção de instrumentos de cultura organizativa para incentivo de condutas éticas tendentes a cumprir compromissos com o direito; o controle na contratação de pessoal sem antecedentes éticos duvidosos (“fichas sujas”); a adoção de procedimentos padronizados propagados aos funcionários da empresa; a adoção de controles e auditorias permanentes; a punição de envolvidos com práticas aéticas; e a adoção de medidas preventivas de cometimento de novos delitos, quando um tenha sido eventualmente identificado. O arsenal de medidas, talvez ainda distantes de nossa cultura empresarial, tem, dentre outras providências, a adoção da figura do whistleblowers, ou “denunciantes cívicos”, pessoas que são incentivadas a levar ao conhecimento interno atitudes que ofendam a ética empresarial estabelecidas nos programas de compliance” (2011, p. 2). SHECAIRA, Sérgio Salomão; ANDRADE, Pedro Luiz Bueno de. Compliance e o Direito penal. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, ano 18, nº 222. São Paulo: IBCCRIM, mai./2011.

([v]) Nesse sentido, destaca-se o trabalho de LAMY, Anna Carolina Pereira Cesarino Faraco. O criminal compliance como ferramenta de enforcement anticorrupção. 2019. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, p. 230.

([vi]) “é essa a compreensão que se extrai da leitura dos artigos 170, 173, 174 e 219 da Constituição Federal quando interpretados pelos filtros dos artigos 1º e 3º do diploma constitucional” (p. 253). Cf. DAVID, Décio Franco. Tratamento penal da corrupção privada a partir de um sistema integral de matriz significativa. 2019. Tese (Doutorado em Ciência Jurídica) – Universidade Estadual do Norte do Paraná, Jacarezinho. No mesmo sentido, GRAU, Eros Roberto.A ordem econômica na Constituição de 1988: interpretação e crítica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, p. 75; COELHO, Fábio Ulhoa. Princípios do Direito comercial: com anotações ao projeto de Código Comercial. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 37.

([vii]) Cf. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; CARVALHO, Edward Rocha de. Acordos de delação premiada e o conteúdo ético mínimo do estado. Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Coimbra, v. 17, n. 1, p. 95-106, jan./mar. 2007.

([viii]) “Não obstante o uso crescente desta ferramenta facilitadora da investigação e da prova criminal, grande é a crítica que sobre ela investe. Ataca-se o fundamento moral da premiação ao traidor, incentivando o Estado o agir imoral, renegado em grau extremo pela própria ética de convivência: o alcaguete é premiado! Aponta-se a inconstitucionalidade do ato desvirtuador do devido processo legal, desrespeitando o princípio da inocência e do pleno contraditório. Critica-se o exclusivo interesse do acomodado estado-persecutor, a falta de controle sobre o procedimento, realizado sem a participação ou mesmo ciência dos delatados, de modo que não se abrem as pressões e os favores ofertados ao delator, não se conhecem os critérios de escolha dos beneficiados, não se controlam os resultados prometidos ou a exclusão do favor na posterior constatação de falsidades... Criticam-se, ainda, as concretizadas negociações do direito de ação sem suporte legal, sem procedimentos e parâmetros previamente estabelecidos, que pela casuística adaptação tendem ao excesso no uso e nos limites” (p. 277). CORDEIRO, Néfi. Delação premiada na legislação brasileira. Revista da AJURIS, Porto Alegre, v. 37, n. 117, p. 273-296, jan./mar. 2010.

([ix]) LOPES JR., Aury. Fundamentos do Processo Penal: Introdução crítica. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 62.

([x]) ROXIN, Claus. Derecho procesal penal. Buenos Aires: Editores del Puerto, 2003, p. 10.

([xi]) Cf. GIMENO BEVIÁ, Jordi. Compliance y processo penal. El proceso penal de las personas jurídicas. Navarra: Civitas/Aranzadi, 2016, p. 195 e ss.

([xii]) Sobre o impacto dos acordos de leniência a partir da Operação Lava-Jato: MORAIS, Flaviane de Magalhães Barros Bolzan de; BONACCORSI, Daniela Villani. A colaboração por meio do acordo de leniência e seus impactos junto ao processo penal brasileiro - um estudo a partir da "Operação Lava Jato". Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 24, n. 122, p. 93-113, ago./2016. Destaca-se ainda que, no acordo de leniência da empresa Andrade Gutierrez, restou determinada a promoção de programa de compliance como cláusula obrigatória do acordo. Sobre o tema, a própria Controladoria-Geral da União na área de notícias no seu Portal na Internet. Disponível em: <http://www.cgu.gov.br/noticias/2018/12/cgu-e-agu-assinam-acordo-de-leniencia-de-r-1-49-bilhao-com-a-andrade-gutierrez>. Acesso em: 16 jan. 2020.

([xiii]) Fonte Portal do Estadão, Blog Fausto Macedo. Disponível em: <https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/wp-content/uploads/sites/41/2015/12/RPESSOA-1.pdf>. Acesso em: 16 jan.  2020.

([xiv]) Sobre a natureza das normas de compliance e como elas são assimiladas, DAVID, Décio Franco; MACCOPPI, Jaqueline Alexandra. Norma de criminal compliance como reconstrução da natureza jurídica das normas jurídicas: da valoração e imperatividade à construção do imaginário social. In: SAAD-DINIZ, Eduardo; BRODT, Luis Augusto; TORRES, Henrique Abi-Ackel; LOPES, Luciano Santos. (Org.). Direito penal econômico nas ciências criminais. Belo Horizonte: Editora Vorto, 2019, p. 125-148. Além disso, como bem destaca Valério Mazzuoli: “Não somente fruto de uma possível conscientização, senão também imposição inserida no acordo de leniência firmado perante o Ministério Público federal, certo é que não somente em sua página na Internet, mas em todo e qualquer documento ou comunicado expedido pela companhia, sempre que possível reitera-se o compromisso com a ética e com a integridade” (p. 37). MAZZUOLI, Valerio de Oliveira; CUNHA, Matheus Lourenço Rodrigues da. Compliance: de instrumento de sustentabilidade empresarial a mitigador de violações a direitos humanos e fundamentais. Revista jurídica UNIGRAN, Dourados, v. 20, n. 39, p. 13-52, jan./jun. 2018. Tais ideias reforçam, nos termos aqui defendidos, a ideia de enforcement.

([xv]) GIMENO BEVIÁ, Jordi. op. cit., p. 203.

([xvi]) KUHLEN, Lothar. Ciestiones Fundamentales de compliance y Derecho penal. In: KUHLEN, Lothar; PABLO MONTIEL, Juan; URBINA GIMENO, Iñigo Ortiz de. (Eds.). Compliance y teoria del Derecho penal. Madrid: Marcial Pons, 2014, p. 51. Idêntica afirmação presente em PRITTWITZ, Cornelius. La posición jurídica (en especial, posición de garante) de los compliance officers. In: KUHLEN, Lothar; PABLO MONTIEL, Juan; URBINA GIMENO, Iñigo Ortiz de. (Eds.). Compliance y teoria del Derecho penal. Madrid: Marcial Pons, 2014, p. 208.

Recebido em: 07/01/2020

Aprovado em: 07/01/2020

Versão final: 17/01/2020

Plea bargain e análise das estatísticas da justiça criminal nacional e paulista

Resumo: O projeto de lei denominado “anticrime”, apresentado pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional, prevê mudanças significativas no sistema processual penal, em especial a introdução e ampliação de mecanismos de consenso. O artigo estuda estatísticas do CNJ e do TJSP, a fim de demonstrar que as justificativas apresentadas não são suportadas em bases empíricas.

Palavras chave:         Processo Penal. Projeto Anticrime. Plea bargain. Número de casos no Judiciário Brasileiro do TJSP.

Abstract: The “Anticrime” bill sent to Congress by the Executive Branch provides significant changes in the Brazilian criminal procedure. It widens and creates consensual mechanisms between the parties. The article analyses CNJ and TJSP statistics in order to demonstrate that the alleged reasoning to this Bill is not supported by empirical evidence.

Keywords:     Criminal Procedure. Anticrime bill. Plea bargain. Docket case numbers in Brazilian Judiciary and in the State Court of São Paulo.

Autor: Fernando Barboza Dias

No pacote de propostas “anticrime”, o projeto de lei que pretende fazer alterações no Código de Processo Penal propõe introduzir os artigos 28-A e 395-A, no Estatuto Processual Penal. O primeiro artigo veicularia o instituto do “acordo de não persecução penal”, enquanto o segundo estabeleceria a possibilidade de as partes do processo poderem “requerer mediante acordo penal a imeadiata aplicação de penas.”

Este artigo se propõe a realizar as seguintes análises: primeiro, como não há nenhum embasamento teórico até o momento apresentado para essas alterações, mas apenas razões de suposta eficiência,([i]) descontruir, a partir do estudo de estatísticas nacionais, as justificativas defendidas até o momento, apresentadas para essas mudanças, as quais serviriam para excluir “pontos de estrangulamento” e aumentar a eficácia do processo penal.([ii])

Essas justificativas genéricas careceram de explicitação no projeto enviado ao Congresso.([iii]) Apesar dessa ausência, as críticas contrárias a essas justificativas foram reduzidas pela estratégia retórica de diminuição da importância da crítica, (eg. “ruídos”).([iv]) Em curtas palavras, até o momento, não houve qualquer justificação teórica no sentido de que o modelo processual de justiça criminal brasileiro provoque injustiças, ou um verdadeiro estudo que demonstre que “pontos de estrangulamento”, ou uma “impunidade” decorrente do sistema que contempla o princípio da obrigatoriedade.

De outro lado, o modelo que se quer implantar já recebeu as mais diversas críticas teóricas e práticas. Aury Lopes Júnior,([v]) Lênio Streck([vi]) e Vinicius Gomes Vasconcellos produziram textos com análises aprofundadas, o primeiro já em vista do projeto em tela.

O parecer do senador Pedro Taques pela rejeição de parte do PL 236/2012 também deveria ser leitura obrigatória.([vii]) Adicionalmente, entre os autores norte-americanos, tem-se a leitura essencial de Robert Scott e William Stuntz, Stephen Schulhofer, entre outros, todos a construírem fundamentações teóricas, favoráveis, contrárias ou até evidenciando o desastre que o plea bargain se revelou. Talvez a crítica mais aprofundada, densa e honesta provenha de Schuneman, que, entre outros pontos, e em linha com a fundamentação clássica de nosso processo penal, defende que o sistema de justiça deve estar orientado a buscar a verdade material,([viii]) pois apenas a partir desta é que se pode, de modo legítimo, alcançar os fins do Direito Penal. O modelo consensual exacerbado, concretizado pela prática nos Estados Unidos, não é orientado para esse fim, e torna o advogado de defesa um funcionário auxiliar do Ministério Público, tudo a custo do réu.([ix])

O presente texto busca contribuir apenas na análise da real necessidade de uma mudança frente à realidade brasileira, que colocará todo o seu peso no exercício do direito de defesa do réu. Assim, busca-se contribuir à discussão que se iniciará nas casas legislativas por meio da análise de dados estatísticos do sistema de justiça criminal brasileiro, que, bem estudados, não justificam a introdução dos artigos 28-A e 395-A na forma como propostos.

O mais completo quadro da situação judiciária brasileira está retratado nos relatórios do “Justiça em Números”, divulgados anualmente pelo Conselho Nacional de Justiça.([x]) Esses dados mostram, sim, uma tendência de crescimento no número de processos criminais em andamento no Brasil, mais de sete milhões, o que deve ser reconhecido de partida.

O que ocorre, porém, é que essa tendência não possui nenhuma evidência de ter relação com o modelo de justiça criminal brasileiro, em especial nenhuma relação com as causas que levaram ao modelo de justiça criminal norte-americano a trabalhar quase que exclusivamente com o plea bargain (custos e tempo de julgamento no júri; júri ser um direito do réu, previsto na 6ª Emenda, que prevê outros direitos procedimentais, sendo impensável sua alteração; riscos insuportáveis para os dois lados no caso de derrota: riscos políticos para o Promotor de Justiça e penas elevadíssimas, inclusive de morte, para o réu). A única coincidência está no crescimento no número de processos em razão de legislação antidrogas, mas essa ocorreu com maior força a partir dos anos 1980 naquele país, quando o plea bargain já possuía.

Indo ao ponto, deve-se chamar atenção ao seguinte: desde 2014 até 2016, houve um aumento significativo do número total de processos pendentes em juízos com competência criminal (Justiça Estadual, Federal, Eleitoral e Militar).([xi]) Em grosso modo, processos pendentes, no relatório do CNJ, são todos aqueles no aguardo de sentença ou acórdão.

No período de 2013 até 2016, no entanto, houve a diminuição de casos novos na justiça criminal, enquanto, ao mesmo tempo, ocorreu certa constância no número de processos baixados. O nó é que não houve, no mesmo período, diminuição de processos pendentes, mas, ao contrário, um aumento significativo (de 5,8 milhões para 6,5 milhões, excluídas as execuções criminais).

Ora, a lógica deveria ditar o seguinte: o recebimento de menos processos novos deve forçar a redução no número de processos pendentes, pois esses devem naturalmente ser baixados ao longo de três anos, sobretudo porque o tempo médio de processos em segunda instância não supera 10 meses na média nacional. Se o problema da justiça criminal fossem os numerosos recursos que o réu dispõe, menos processos novos significariam menos defesas novas... No entanto, os números mostraram o contrário.

Ou seja, como explicar essa diminuição no número de casos novos por quatro anos seguidos, mas sem um impacto no número de casos pendentes, que somente veio a diminuir no quarto ano de diminuição de casos novos? Para essa pergunta, vale lembrar que processo pendente é aquele em que não houve nem sequer movimentação para instância inferior ou superior, de modo a não ter havido nem sentença, nem acórdão definitivo – tudo isso a grosso modo, frise-se.

Ao mesmo tempo que o número de processos pendentes permanece alto, existem no Brasil mais de trezentos mil mandados de prisão pendentes de cumprimento. Quantos desses mandados correspondem a processos em que não houve nem citação real do réu (portanto, processos pendentes) é dado desconhecido, mas certamente não desprezível. Isso indica uma possível falta de gestão estratégica para esses casos. Essa possível ausência pode ser evidenciada pelo fato de que, desde 2013, o CNJ não divulga diagnósticos acerca do tema,([xii]) sendo que, na época, os dados levantados já revelavam patamares deveras baixos (média de apenas 57% de execução de estratégias na Justiça Estadual).

Os números de “taxa de congestionamento” e de “recorribilidade” também deveriam ser estudados. A “taxa de congestionamento” é a proporção entre o número de casos novos, pendentes e os baixados, equivalendo à vazão de uma caixa d’água. Esses dois números, porém, são calculados globalmente, sem se separar por justiça criminal, o que já indica a necessidade urgente de ser estudada separadamente, sobretudo porque se sabe que a maioria dos casos em litígio não são da justiça criminal.

Mesmo que o índice de recorribilidade na esfera criminal seja alto, isso não comprova um “abuso” no exercício do direito de defesa. Veja-se, por exemplo, o caso dos condenados por tráfico de drogas (24,74%) e roubo (27,58%), a representarem 52% dos presos que cumprem pena.([xiii]) Embora essas pessoas possam receber imputações por outros crimes em conjunto, ou em outros processos, é fato que o maior porcentual de idade da população carcerária é de entre 18 e 24 anos (30,52%) e 25 a 29 anos (23,39%),([xiv]) sendo válido concluir que uma parcela consideravél dos presos por tráfico de drogas e roubo estão justamente nessa faixa de idade, quando ainda são primários e deveriam fazer jus ao “tráfico privilegiado”, ou uma pena com regime semiaberto, no caso do roubo.

No entanto, pesquisa da jurisprudência da maioria dos tribunais estaduais demonstra que um direito literal dos réus por tráfico não é admitido: para o “tráfico privilegiado”, quando se consegue a súplica de se fazê-lo reconhecido, o cumprimento de pena em regime aberto não é conferido em primeira, nem segunda instância, o que somente é provido mediante sucessivos recursos até o Supremo Tribunal Federal, que já reconheceu não ser esse delito de natureza hedionda.([xv])

Portanto, para 52% dos encarcerados, a recorribilidade é o único remédio para verem um direito seu reconhecido. Não há justificativa válida para suprimir o direito de recurso nesse caso. No modelo proposto, quantos réus vão aceitar uma pena menor, em regime fechado, em troca de seu direito à liberdade? O custo da reforma evidentemente está nessas pessoas. A gravidade do assunto é percebida, ainda, quando se verifica que os mesmos agentes que possivelmente provocam esse alto número de recursos, negando direitos literais, agora desejam uma mudança nas estruturas no sistema, para que esses réus não mais exerçam seus direitos contra suas decisões.

Outra possível análise está no caso particular do Tribunal de Justiça de São Paulo, Corte com o maior escore nacional segundo a metodologia aplicada pelo CNJ no “Justiça em Números”.

Sozinho, esse tribunal possuiria quase dois milhões de casos pendentes no ano de 2017, de um total nacional na justiça estadual de 6 milhões de processos pendentes. Ou seja, sozinho, São Paulo possui um terço dos casos criminais pendentes da Justiça Estadual brasileira.

Na cidade de São Paulo/SP, no Foro Central da Barra Funda, talvez o maior fórum criminal das Américas, segundo pesquisa obtida, houve a distribuição/redistribuição de 12.660 denúncias nos últimos seis meses. Desse total, 10.042 denúncias se referem a tráfico de drogas (449), crimes de roubo (3.185), furto qualificado (2.272), furto (1.704), estelionato (819) e crimes de receptação (1.613).([xvi])

Em termos de desafogamento do Poder Judiciário, a proposta do artigo 28-A possuiria efeito reduzido, pois dessas 10.042 ações penais, somente 1/3 poderia comportar sua aplicação (furto e receptação), considerada a pena mínima, sem levar em conta, ainda, os requisitos objetivos, que deveriam diminuir ainda mais esse percentual.

A proposta do artigo 395-A possuiria aplicação irrestrita para todos esses casos, mas não há nenhum estudo que demonstre que ele contribuiria para a melhoria da sensação de “impunidade”, que tanto é alegada, aplicando benefícios legais para todos esses delitos, sem a efetiva condenação do réu e com supostas diminuições de pena.

Ademais, tome-se o exemplo dos Juizados Especiais Criminais: foram propostas, apenas no ano de 2017, 17.662 denúncias nesse âmbito jurisdicional. Porém, apenas 856 denúncias foram rejeitadas (quase 5%), número baixíssimo considerados os casos que tramitam nessas jurisdições (decadência, prescrição, composição na esfera cível, são todas possibilidades que poderiam evitar denúncias e o recebimento destas).([xvii]) Pelo exemplo da experiência desse microcosmo, a adoção do artigo 395-A será a regra, em detrimento da efetiva apreciação da validade de denúncias.

Assim, em conclusão, a realidade desses números necessita ser melhor analisada antes de se alegar serem necessárias mudanças no processo penal, de sustentar que há “pontos de estrangulamento”, ou qualquer outra justificativa que não resiste a uma análise séria. Da mesma forma, alegar que existe uma “sensação de impunidade”, “corrupção”, entre outras tantas justificativas vazias, não estimula um debate adequado.

Fernando Barboza Dias

Pós-graduado em Direito Penal Econômico pela FGV. LL.M. pela University of Virginia. Membro do IDDD e da AIDP.

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5672-6498

([i]) Concebido por atores desconhecidos, em tempo desconhecido, utilizando-se de fontes tampouco conhecidas, o projeto de lei não possui sequer uma exposição de motivos, o que um certo apreço pelo diálogo democrático deveria impor.

([ii]) Justificativas apresentadas pelo novo Ministro de Justiça e Segurança Pública em seu discurso de posse. Moro propõe “plea bargain” para eficácia da Justiça Criminal. Migalhas. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI293898,71043-Moro+propoe+plea+bargain+para+eficacia+da+Justica+Criminal>. Acesso em: 8 jan. 2019.

([iii]) A CONAMP (Associação Nacional dos Membros do Ministério Público) defende publicamente a proposta do Ministério de Justiça e Segurança Pública <https://www.conamp.org.br/pt/biblioteca/artigos/item/2355-plea-bargain-sem-medo-de-propor-uma-justica-moderna-mais-agil-e-efetiva.html>, assim como o Fórum Nacional de Juízes Criminais (POMPEU, Ana. Moro quer trazer ao Brasil sistema de acordos entre réu e MP dos EUA. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-jan-05/moro-trazer-brasil-sistema-acordos-entre-reu-mp-eua. Acesso em: 5 jan. 2019>.

([iv]) ALBUQUERQUE, Manoela. “Muitos ruídos”, diz Moro sobre resistência a pacote anticrime. Metrópoles.  Disponível em: <https://www.metropoles.com/brasil/justica/muitos-ruidos-diz-moro-sobre-resistencia-a-pacote-anticrime>. Acesso em: 28 fev. 2019.

([v]) LOPES JR., Aury. Adoção do plea bargaining no projeto "anticrime": remédio ou veneno? Conjur.  Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-fev-22/limite-penal-adocao-plea-bargaining-projeto-anticrimeremedio-ou-veneno>. Acesso em: 22 fev. 2019.

([vi]) STRECK, Lenio Luis. Barganha penal que ameaça garantias é fast food processual! Conjur.  Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-jan-10/senso-incomum-barganha-penal-ameaca-garantias-fast-food-processual>. Acesso em: 10 jan. 2019.

([vii]) Senado. Comissão Temporária de Estudo da Reforma do Código Penal do Senado. Parecer Aprovado em 17 de dezembro de 2013. Páginas 136/137. Na justificativa, foi observado o seguinte: “A realidade dos juizados especiais criminais informa que a conciliação tem como principal função não o ressarcimento dos danos, mas, sim, o arquivamento do processo através da renúncia da vítima. A explicação para o alto índice de arquivamentos de processos em alguns Estados estaria na indução, por parte do magistrado, na insistência feita à vítima para aceitar o compromisso do agressor de não cometer mais o ato violento. Assim, o espírito conciliatório da lei transforma-se, na realidade, em espírito renunciatório para a vítima. É um desvirtuamento do instituto ocasionado por nossa cultura.” (páginas 136/137).

([viii]) Esse artigo deve pontuar, brevemente, as críticas de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, para quem, segundo é possível entender, o modelo processual penal brasileiro, com ampla permissão ao juiz para buscar a produção probatória, conduz o magistrado a fazer prevalecer as hipóteses assumidas sobre os fatos e orienta a decisão para onde quiser, o que o forçaria a testar suas hipótese “até quando não for mais possível”, métodos esses que apenas refletiriam a crença na real possibilidade de se conhecer a Verdade (Sistema Acusatório: cada parte no lugar constitucionalmente demarcado. In: O novo processo penal à luz da Constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 8, 12-13). Aury Lopes Jr. também pontua a relação entre o sistema inquisitório e a necessidade de o processo penal estar orientado para a busca da verdade rito, a qual seria um mito, além de legitimar atos abusivos do Estado, de modo tal que no processo penal a verdade formal ou processual seria o único vetor legítimo. (LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 16. ed. São Paulo: Saraiva. p. 372-373). V. ainda artigo de Salah Khaled Jr. A ambição de verdade e a permanência do autoritarismo processual penal. RBCCRIM, n. 156, v. 27, p. 395-423, 2019.  

([ix]) A dinâmica dessas críticas está muito bem exposta no filme “Criminal justice system: nothing Cuts Deeper” (1990), expondo a desídia, preguiça, má vontade e perigos que um réu que decide se defender há de enfrentar. Não que elas já não existam em nossa práxis, mas vale ver.

([x]) Justiça em Números 2018: ano-base 2017/Conselho Nacional de Justiça - Brasília: CNJ, 2018.

([xi]) Processos pendentes significam aqueles que não receberam movimento de baixa ao longo do ano. Processos baixados, por sua vez, são aqueles que ou (i) foram remetidos para outros órgãos judiciais competentes, desde que vinculados a diferentes tribunais; ou (ii) remetidos para instâncias inferiores ou superiores, (iii) ou arquivados definitivamente, ou aqueles em que houve decisões que transitaram em julgado e iniciou-se a liquidação, cumprimento ou execução. (Justiça em Números 2018: ano-base 2017/Conselho Nacional de Justiça - Brasília: CNJ, 2018, pág. 67).

([xii]) Conselho Nacional de Justiça. Diagnóstico de Gestão Estratégica. Diagnóstico de 2013. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/gestao-e-planejamento/gestao-e-planejamento-do-judiciario/diagnostico-de-gestao-estrategica>. Acesso em: 1 mar. 2019.

([xiii]) Banco Nacional de Monitoramento de Prisões – BNMP 2.0: Cadastro Nacional de Presos, Conselho Nacional de Justiça, Brasília, agosto de 2018. p. 47.

([xiv]) Idem, ibidem, p. 52.

([xv]) STF, HC 118533, Rel. Min. Carmén Lúcia, Tribunal Pleno, julgado em 23/06/2016.

([xvi]) Pesquisa fornecida, mediante requerimento, pelo distribuidor do Fórum Criminal, deferida pelo Juízo Corregedor do Foro.

([xvii]) Tribunal de Justiça de São Paulo. Corregedoria. Comunicado CG n.º 195/2018 - republicado por conter valor equivocado no item 9.

Recebido em: 01/03/2019

Aprovado em: 01/07/2019

Versão final: 11/11/2019

A intervenção do advogado na investigação criminal: considerações à luz do inciso XXI do art. 7º do EAOB

Resumo: O artigo tem por objetivo realizar uma breve análise legislativa, jurisprudencial e doutrinária sobre a participação da defesa nos atos investigatórios, seja no inquérito policial, sejam em procedimentos realizados por outras autoridades. A análise parte de uma leitura constitucional do inciso XXI, do art. 7º, do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), introduzido pela Lei 13.245/2016, cotejando-o com o projeto de reforma, em curso, do processo penal brasileiro.

Palavras-chave: Intervenção da defesa, investigação criminal, Estatuto da OAB.

Abstract: This article aims to conduct a brief legislative, jurisprudential and doctrinal analysis on the defense intervention in investigative acts, either in the police investigation, or in procedures performed by other authorities. The overview starts from a constitutional analysis of the article 7, XXI, OAB (Brazilian bar association) Statute, introduced by Law 13.245/2016, comparing it with the ongoing reform project in the realm of the Brazilian criminal procedure law.

Keywords: Defense intervention; criminal investigation; OAB Statute.

Autor: Rodrigo Sánchez Rios e Luiz Gustavo Pujol

O ponto central da discussão sobre a participação da defesa técnica do indiciado nos atos investigatórios, levados a efeito durante o inquérito policial ou equivalente a cargo de outras autoridades, parece residir, atualmente, no resultado interpretativo derivado da conjugação das seguintes disposições normativas: o artigo 5º, inciso LV, da CF/88; o artigo 20, do Código de Processo Penal (Decreto-Lei 3.689/41); a Súmula Vinculante 14 do Supremo Tribunal Federal (STF) (com edição no ano de 2008);  e os incisos XIV e XXI e § 11º, todos do artigo 7º do Estatuto da OAB (Lei 8.906/94, com redação conferida pela Lei 13.245/2016).([i])

A extensão aparentemente ilimitada do sigilo da investigação policial, assegurado pelo artigo 20 do Código de Processo Penal,([ii]) como retrato do momento histórico inspirador de sua edição no ano de 1941,([iii]) foi sendo mitigada com a paulatina democratização dos atos investigatórios. Nos últimos 30 anos, tentou-se compatibilizar, tanto quanto possível, a eficiência e produtividade da função investigativa estatal com os direitos fundamentais do investigado, sendo a este permitido, em momento inicial, tomar conhecimento do teor da apuração em andamento por meio de seu defensor.

A viabilidade de acesso aos autos da investigação pelo advogado do indiciado exsurge como decorrência lógica do desenvolvimento civilizatório inerente às regras, que disciplinam a intervenção estatal no domínio individual. De outro modo, vigorando o segredo e o silêncio, estar-se-ia frente a uma situação persecutória digna da obra kafkiana.

A Constituição Federal de 1988 desempenhou um papel interpretativo relevante enquanto chave de leitura de toda a legislação infraconstitucional anterior e posterior a ela, dada sua posição de destaque como ápice do ordenamento jurídico positivo. Introduziu uma série de garantias fundamentais próprias de qualquer país democrático e em consonância com os tratados internacionais sobre o tema, em grande parte vertidas nas cláusulas pétreas do seu artigo 5º. No âmbito do processo penal, esses dispositivos formam um escudo em torno do indivíduo, reconhecidos como de interesse público e de supremo valor, protegido constitucionalmente, mesmo – e talvez especialmente nestes casos – quando sujeitos à restrição pública legitimada para atendimento de uma finalidade considerada comum, como nos casos dos fins atribuídos à intervenção penal.

O inciso LV do artigo 5º da Carta Constitucional([iv]) procurou estender a participação da defesa aos acusados de modo geral, incluindo-se aqui a esfera penal e administrativa, por meio da garantia da bilateralidade de fala (contraditório) e da ampla defesa, a qual compreende – ao menos na esfera criminal – a autodefesa e a defesa técnica exercida por profissional habilitado nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

No ano de 1994, a garantia de acesso aos autos do inquérito policial por parte do advogado do indiciado foi positivada legalmente, sendo outorgada ao defensor a possibilidade de exame dos autos das investigações finalizadas ou em andamento, mesmo sem procuração do indiciado.([v]) A medida reduziu consideravelmente a amplitude do sigilo das investigações a ser protegida pela autoridade, pois, a partir de então, o segredo não poderia mais – de modo claro e expresso – ser oposto ao indiciado e ao seu advogado.

Recorrentes descumprimentos desta imposição normativa por parte das autoridades policiais ensejaram a edição, pelo Supremo Tribunal Federal e com base na Emenda Constitucional 45,([vi]) da Súmula Vinculante 14,([vii]) que assegura o respeito à prerrogativa profissional por intermédio do instrumento processual da Reclamação à Corte Suprema, em consonância com o § 3º do artigo 2º da Emenda Constitucional referida.([viii])

Recentemente, a Lei 13.245/2016 parece ter avançado em direção a uma maior participação defensiva no âmbito das investigações preliminares. Inicialmente, conferiu nova redação ao inciso XIV do artigo 7º do Estatuto da OAB,([ix]) estendendo a possibilidade de exame do defensor a autos de investigações de qualquer natureza, reconhecendo tanto a capacidade investigativa das Polícias Judiciárias quanto das apurações criminais a cargo do Ministério Público em procedimentos administrativos próprios, inclusive em meio eletrônico.  

Não obstante, a inovação mais digna de nota trazida pela norma supracitada reside na introdução do inciso XXI ao artigo 7º do Estatuto,([x]) segundo o qual é direito do defensor “assistir a seus clientes durante as apurações das infrações, sob pena de nulidade absoluta do interrogatório ou depoimento”, inquinando com o vício de nulidade também os atos que sejam a eles (ao interrogatório ou ao depoimento) subsequentes,([xi]) sendo garantido ao advogado, ainda, formular quesitos.

Ou seja, agora não se trata apenas de reconhecer a necessidade de presença do defensor por ocasião do interrogatório do seu constituinte pela autoridade policial ou simplesmente permitir-lhe o acesso e a extração de cópias dos atos investigatórios já realizados e constantes nos autos, mas de lhe assegurar uma efetiva participação na produção do elemento probatório indiciário acerca da autoria e da materialidade delitivas.

Com efeito, a lei emprega o vocábulo assistir, no sentido aparentemente óbvio de defender, o cliente durante a apuração das infrações, sob pena de nulidade absoluta do interrogatório ou do depoimento (o primeiro, ato sabidamente reservado exclusivamente ao indiciado, o segundo ao próprio investigado - embora ainda não indiciado - e às testemunhas) e de todos os atos direta ou indiretamente deles derivados.

A alínea a do inciso XXI, em complementação, permite ao defensor – como contorno objetivo da assistência jurídica garantida pela disposição – apresentar razões e formular quesitos, isto é, dirigir perguntas por ocasião do interrogatório (do seu cliente, indiciado) ou do depoimento (do próprio cliente ainda não indicado ou da testemunha) a que se refere o inciso ao qual a alínea a está relacionada.

Ademais, o legislador expressamente afirma ser direito do advogado assistir a seus clientes “durante a apuração das infrações”, sob pena de nulidade do interrogatório ou do depoimento. Não diz assistir a seus clientes no interrogatório ou depoimento, o que limitaria a assistência jurídica apenas a estes atos.([xii])

Por mais que a cultura inquisitorial inerente ao nosso sistema investigativo se oponha às determinações legais vigentes, a interpretação jurídica atinente aos postulados da máxima efetividade dos direitos fundamentais do indivíduo implicado na persecução penal é justamente esta: se o legislador não desejasse viabilizar a participação ativa da defesa técnica não só no interrogatório do próprio constituinte, mas também no depoimento de testemunhas ouvidas no inquérito policial, mantendo a sua intervenção restrita à possibilidade de acesso aos atos de investigação já documentados nos autos e à sua presença contemplativa no interrogatório do cliente, seria absolutamente dispensável ter promovido as significativas alterações aqui debatidas, em especial a partir da introdução do inciso XXI ao artigo 7º do Estatuto. Frise-se, se diversa fosse a intenção, o acréscimo promovido pelo texto legal de 2016, inserido no âmbito das prerrogativas, sequer teria sido cogitado.

Assim, a presença do defensor e a possibilidade de formulação de quesitos – providências defensivas agora asseguradas, como visto, pelo inciso XXI e alínea a do artigo 7º do Estatuto – caracterizam uma atuação jurídica contemporânea (não meramente posterior ou diferida) à produção de qualquer ato investigatório.

Neste sentido, embora o § 11([xiii]) do artigo 7º faça expressa referência apenas à prerrogativa insculpida no inciso XIV – estabelecendo a possibilidade de que a autoridade responsável pela investigação limite o acesso do causídico à diligências em andamento, providência condicionada à existência de risco à apuração –, o dispositivo poderia ter aplicação para impedir também a atuação do defensor durante as oitivas de testemunhas do inquérito quando o responsável pela presidência do procedimento fundamente, de modo  concreto, o “risco de comprometimento da eficiência, da eficácia ou da finalidade das diligências”.

À luz do espírito constitucional de 1988 e dos avanços normativos e jurisprudenciais em torno da matéria, este marco interpretativo, a nosso juízo, seria aquele mais consentâneo com a necessidade de garantia dos direitos do investigado, ao mesmo tempo em que resguarda o grau de sigilo necessário para o bom andamento dos trabalhos de investigação da materialidade e da autoria delitivas.

Destarte, o controle de idoneidade da fundamentação impeditiva da atuação do defensor na fase preliminar, nos termos do já mencionado § 11 do artigo 7º do Estatuto, poderia ser promovido, caso se mostre necessário, por intermédio dos instrumentos de impugnação judicial autônomos, fundamentalmente o Habeas Corpus, a fim de se verificar o possível advento da consequência oriunda da não observância legal, qual seja, a nulidade absoluta do depoimento, assim como de todos os outros atos procedimentais deles decorrentes, seja de forma direta ou indireta.([xiv])

De todo modo, parece clara – como consequência lógica da evolução democrática que vem tendo lugar no tocante à participação do defensor durante a oitiva de seu cliente investigado – a aplicabilidade do § 11 do referido artigo a todos os atos de investigação (como perícias e depoimentos testemunhais), mas não para o interrogatório, sob pena de regressarmos a um estágio onde o indiciado era visto como objeto instrumentalizado para descortinar a verdade material dos fatos  e não como verdadeiro sujeito de direitos.

A consolidação dessa tendência normativa clama por uma mudança de cultura por parte do Poder Público quanto ao resguardo pleno das garantias e da própria dignidade do investigado na fase pré-processual. Por consequência, independentemente da expectativa por uma nova lei penal adjetiva, urge a disponibilização dos recursos materiais necessários para a implementação destas diretrizes por parte do agente público.

Rodrigo Sánchez Rios

Doutor em Direito penal e Criminologia pela Università degli studi di Roma III – La Sapienza. Professor de Direito penal da Graduação e da Pós-graduação da PUC-PR. Advogado criminalista. Secretário-geral da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Paraná.

ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9910-654X


Luiz Gustavo Pujol

Mestre em Direito pela PUC-PR. Professor de Direito Processual penal na mesma instituição. Advogado criminalista.

ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0296-7517

([i]) De lege ferenda, vale citar os dispositivos incluídos no Projeto de Lei 8.045/2010 da Câmara dos Deputados (Projeto de novo Código de Processo Penal). O art. 13 inclui a possibilidade de investigação defensiva e o art. 26 faculta ao defensor a possibilidade de requerer à autoridade policial qualquer diligência, quando reconhecida sua necessidade. Na hipótese de indeferimento deste requerimento, será ainda cabível representação à autoridade superior ou ao órgão responsável do Ministério Público. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1638152 &filename=PL+8045/2010.>. Acesso em: 01 de ago. 2019.

([ii]) “Art. 20.  A autoridade assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade.” BRASIL. Código de Processo Penal. Decreto lei nº 3.689, de 03 de outubro de 1941. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Decreto-Lei/Del3689.htm. Acesso em: 17.jan.2020.

([iii]) Por todos, vide Aury Lopes Júnior, para quem: “Feito isso, é imprescindível marcar este referencial de leitura: o processo penal deve ser lido à luz da Constituição e não o contrário. Os dispositivos do Código de Processo Penal é o que deve ser objeto de uma releitura mais acorde aos postulados democráticos e garantistas na nossa atual Carta, sem que os direitos fundamentais nela insculpidos sejam interpretados de forma restritiva para se encaixar nos limites autoritários do Código de Processo Penal de 1941.” (p. 45). JÚNIOR, Aury Lopes. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2014.

([iv]) “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;” BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 15 jan. 2020.

([v])  Art. 7º “XIV - examinar em qualquer repartição policial, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de inquérito, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos;” BRASIL. Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil: Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8906.htm . Acesso em 17.jan.2020.

([vi]) “Art. 2º A Constituição Federal passa a vigorar acrescida dos seguintes arts. 103-A, 103-B, 111-A e 130-A: Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.” BRASIL. Emenda constitucional nº 45, de 30 de dezembro de 2004. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc45.htm. Acesso em 17.jan.2020.

[vii] “SV 14, STF - É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.” BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula n° 14. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/menuSumario.asp?sumula=1230. Acesso em 17.jan.2020.

[viii] “§ 3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso.” BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 15 jan. 2020 .

([ix]) “Art. 7.º São direitos do advogado: [...] XIV - examinar, em qualquer instituição responsável por conduzir investigação, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de investigações de qualquer natureza, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos, em meio físico ou digital;” BRASIL. Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil: Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8906.htm . Acesso em 17.jan.2020.

([x]) “Art. 7.º São direitos do advogado:  [...] XXI - assistir a seus clientes investigados durante a apuração de infrações, sob pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento e, subsequentemente, de todos os elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados, direta ou indiretamente, podendo, inclusive, no curso da respectiva apuração: a) apresentar razões e quesitos; [...]”BRASIL. Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil: Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8906.htm . Acesso em 17.jan.2020.

([xi]) Em que pese, até então, fosse entendimento dominante no Superior Tribunal de Justiça (STJ) o fato de não ser possível a declaração de nulidade no Inquérito Policial: “É  cediço  que  o  inquérito  policial  é  peça  meramente informativa, de modo que o exercício do contraditório e da  ampla  defesa,  garantias  que  tornam  devido  o  processo  legal,  não  subsistem  no  âmbito  do  procedimento  administrativo  inquisitorial.  Precedentes. [...]”. STJ, RHC 57.812/PR, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 15/10/2015, DJe 22/10/2015. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo /revista/documento/mediado/?componente=MON&sequencial=46250476&num_registro=201500596249&data=20150409.>. Acesso em: 15 jan. 2020.  

([xii]) Segundo Eujecio Lima Filho: “A nulidade absoluta decorrente da violação do art. 7.º, XXI, do Estatuto da OAB, diz respeito não apenas ao interrogatório ou depoimento, mas também aos demais elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados, direta ou indiretamente. Assim, as provas decorrentes do ato nulo também serão nulas como, por exemplo, o depoimento de uma testemunha indicada pelo investigado ouvido sem que a Autoridade Policial permitisse a presença do respectivo advogado”. LIMA FILHO, Eujecio Coutrim. Lei 13.245/2016: uma análise do caráter democrático do inquérito policial. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 126, p. 160-180, dez./2016.

([xiii]) “§ 11.º No caso previsto no inciso XIV, a autoridade competente poderá delimitar o acesso do advogado aos elementos de prova relacionados a diligências em andamento e ainda não documentados nos autos, quando houver risco de comprometimento da eficiência, da eficácia ou da finalidade das diligências.” BRASIL. Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil: Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8906.htm . Acesso em 17.jan.2020.

([xiv]) O projeto de Novo Código de Processo Penal (Projeto de Lei 8.045/2010 da Câmara dos Deputados) prevê, expressamente, na hipótese de indeferimento de diligências requeridas pela defesa, o cabimento de representação à autoridade policial superior ou ao órgão responsável do Ministério Público. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1638152&filename=PL+8045/2010.>.  Acesso em: 01 de ago. 2019.

 Recebido em: 05/08/2019

Aprovado em: 08/12/2019

Versão final: 17/01/2020

Dos maxiprocessos aos casos triviais: a expansão da cegueira deliberada na prática judicial

Resumo: Este artigo discorre acerca da Teoria da Cegueira Deliberada, particularmente quanto à sua aplicação em julgado proferido pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Para tanto, debate-se a questão atinente à equiparação da cegueira deliberada ao dolo eventual, especialmente diante dos artigos 18, I, e 20 do Código Penal, de forma a apontar que o conhecimento é elemento central do dolo. Na sequência, aprecia-se voto em que, julgando recurso atinente a crimes tributários, a Corte catarinense mencionou a Teoria da Cegueira Deliberada. Apreciam-se, então, as minúcias do caso concreto, em especial no que toca à autoria delitiva. Aponta-se, por fim, que a Teoria da Cegueira Deliberada, outrora reservada a casos célebres e maxiprocessos, parece expandir-se para atingir também casos triviais.

Palavras-chave: teoria da cegueira deliberada; dolo eventual; conhecimento; crime tributário; Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina.

Abstract: This article discusses the willful blindness doctrine, particularly its application in a decision given by the Santa Catarina’s Justice Court. To reach this goal, this study debates the equalization between the willful blindness and dolus eventualis, especially under the articles 18, I, and 20 of the Brazilian Penal Code, in order to point out that knowledge is the central element of dolus. Further up, this paper analyzes the judicial opinion in which, facing an appeal regarding tax crimes, the Santa Catarina’s Justice Court used the willful blindness doctrine. The specific details of the case, especially those regarding the criminal authorship, are discussed. The paper concludes that, if the use of the willful blindness doctrine began in famous cases, it now seems to expand to other trivial cases.

Keywords: willful blindness doctrine; dolus eventualis; knowledge; tax crime; Santa Catarina’s Justice Court.

Autor: Chiavelli Facenda Falavigno, Luis Irapuan Campelo Bessa Neto e Luiz Eduardo Dias Cardoso

No dia-a-dia forense e mesmo no âmbito doutrinário, é cada vez mais comum a adoção de teorias e critérios importados de sistemas alienígenas – especialmente dos Estados Unidos da América –, a configurar o fenômeno dos legal transplants. A introdução tem se dado, na maior parte das vezes, por meio do Poder Judiciário, sobretudo por seu órgão de cúpula, o Supremo Tribunal Federal (STF), que acaba por delinear e autorizar a utilização desses institutos estranhos ao ordenamento jurídico brasileiro. É o caso, por exemplo, da chamada Teoria da Cegueira Deliberada (willful blindness doctrine), que nasce no século XIX, na Inglaterra (caso Regina v. Sleep – 1861), mas tem seu desenvolvimento atribuído aos estadunidenses, a partir do caso Spurr v. United States (1899)([i]).

Não obstante algumas referências ao instituto em decisões de primeiro grau – especialmente a partir do famoso caso do furto ao Banco Central do Brasil em Fortaleza,([ii]) ocorrido no ano de 2005 e julgado dois anos mais tarde –, foi no julgamento da Ação Penal 470, mais conhecida como “caso Mensalão”, que o tema ganhou notoriedade e relevância. Isso porque o STF utilizou dita teoria sem qualquer exame de compatibilidade com o ordenamento pátrio, bem como sem cuidado metodológico adequado ao emprego do direito comparado, conforme já apontou Guilherme Lucchesi.([iii])

A teoria, aliás, sobretudo no âmbito da Operação Lava Jato, tem sido muito utilizada para a condenação de agentes pela prática do crime de lavagem de dinheiro, especialmente em razão da alteração promovida pela Lei 12.683/12, que, segundo entendem alguns autores,([iv]) passou a permitir a punição quando configurado, no que toca ao elemento subjetivo do ilícito típico, o dolo eventual. Tem-se afirmado no Brasil, portanto, que a Cegueira Deliberada seria uma espécie de dolo eventual, conclusão que é fruto de um desconhecimento tanto da teoria alienígena, erroneamente aplicada pelo Supremo Tribunal Federal, quanto da própria concepção de dolo no Direito Penal brasileiro.

Com efeito, uma leitura conjugada dos artigos 18, inc. I, e 20 do Código Penal permite inferir que o conhecimento – e não a vontade – é o elemento central do dolo,([v])  de forma que somente há dolo diante do conhecimento efetivo, pelo agente, de todas as circunstâncias elementares do crime.([vi]-[vii]) Logo, é inviável equiparar a cegueira deliberada ao dolo eventual, porque a essência da willful blindness é exatamente o não conhecimento, uma vez que o agente, ciente da elevada probabilidade de existência de uma circunstância ou fato elementar do delito, o qual ele acredita ter ocorrido, adota medidas deliberadamente voltadas a evitar comprovar a existência de dito fato ou de dita circunstância.([viii]) Segundo Luís Greco,([ix]) o dolo exige conhecimento psicológico sobre a probabilidade do resultado([x]) e não mera probabilidade do conhecimento em si, pois somente com o efetivo conhecimento pode haver domínio sobre o fato.([xi])

Portanto, a exigência extraída do artigo 20 do Código Penal – no sentido de que o agente tenha efetivo conhecimento dos elementos constitutivos do tipo para que aja dolosamente – rechaça a equiparação da cegueira deliberada ao dolo eventual, justamente porque a elevada probabilidade, ínsita à cegueira deliberada, não coincide com o conhecimento efetivo, subjacente ao dolo – na forma em que se encontra previsto no sistema pátrio. Por outro lado, se existente o conhecimento, descabe a utilização da cegueira deliberada, justamente porque o ordenamento já possui disposição específica própria para ensejar a punição, qual seja, o próprio dolo, em sua modalidade direta ou eventual. Como bem afirma Guilherme Brenner Lucchesi, no Brasil, passou-se a punir a culpa como se dolo fosse.([xii]) Ou seja, a utilização da cegueira deliberada passou, em muitos casos, a suplantar a ausência de previsão legal expressa de punição na modalidade culposa de alguns tipos, o que seria essencial para que houvesse a condenação.

Anos após a decisão proferida na Ação Penal 470, com a utilização sistemática de seus argumentos em ações penais relativas a grandes operações de combate à criminalidade econômica – os chamados “maxiprocessos” –, surgem os primeiros reflexos da adoção da teoria nos Tribunais estaduais, que passaram a fazer uso do instituto a fim de suprir suposto vácuo de punibilidade, consubstanciado na (também suposta) insuficiência das espécies de dolo para o sancionamento de certas condutas.

No Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, mais especificamente, após consulta ao Portal da Jurisprudência,([xiii]) verifica-se recente decisão, datada de 31/10/2019, em julgamento de apelação criminal, que menciona a Teoria da Cegueira Deliberada já em sua ementa. Em que pese a existência de outras quatro decisões que também mencionam a teoria no bojo da argumentação exposta nos votos, opta-se por analisar o julgado mencionado não apenas por ser bastante recente, mas também pela discussão nele realizada. No caso, muito embora a teoria não tenha sido tratada de forma pormenorizada pelos julgadores – pois foi aventada pelo Ministério Público do Estado de Santa Catarina em alegações finais –, ela serviu de argumento subsidiário para a condenação do agente, por meio da conhecida (e problemática) técnica de fundamentação per relationem. Extrai-se da decisão no que se refere à utilização da Teoria da Cegueira Deliberada: “No entanto, a justificativa apresentada, ainda que seu funcionário tenha prestado depoimento nesse sentido, não merece amparo. Isso porque não é crível que os acusados não tiveram contato, durante três meses (lapso aproximado entre o recebimento da notificação e o parcelamento do débito fiscal) com seu funcionário de confiança a respeito da movimentação e do dia a dia da empresa. Do mesmo modo, não se pode acreditar que tal funcionário não tenha lhes repassado a informação de recebimento de correspondências provenientes de Órgão Público.

Mesmo que assim não fosse, à luz da teoria da cegueira deliberada, ter-se-ia a hipótese, já que os acusados eram sócios administradores da empresa, de que eles deixaram, intencionalmente, de gerir e tomar as devidas cautelas em relação à empresa, assumindo qualquer risco que daí pudessem [sic] surgir, em especial porque a abandonaram pelo referido período e porque estavam cientes do não recolhimento ICMS durantes os meses de janeiro a julho de 2015 (confirmado nos interrogatórios judiciais), configurando, assim, o dolo eventual em suas condutas.”[xiv]

Como se depreende da decisão, o argumento utilizado incide nos mesmos erros das demais decisões judiciais proferidas no Brasil no que se refere à Teoria da Cegueira Deliberada: a) confunde-se dolo eventual com Cegueira Deliberada; e b) compreende-se que o conhecimento não é necessário para o dolo, bastando sua presunção.

O manejo da Teoria da Cegueira Deliberada no julgamento de crimes tributários é especialmente problemático, dado o pouco cuidado dispensado à questão da autoria no gênero. Com efeito, a práxis forense tem demonstrado que, em crimes contra a ordem tributária, a posição formalmente ocupada pelo agente no corpo societário da pessoa jurídica que inadimpliu os tributos acarreta, quase que automaticamente, sua condenação, em uma espécie de responsabilização objetiva contra legem.

Nesse cenário, a Teoria da Cegueira Deliberada é utilizada como forma de transpor obstáculos probatórios: ainda que não haja prova da efetiva participação do agente na sonegação tributária, considera-se possível a sua responsabilização em razão de suposta assunção de riscos. No caso do acórdão acima apontado, o Tribunal de apelação, valendo-se das alegações ministeriais, imputou aos apelantes a autoria delitiva porque “deixaram, intencionalmente, de gerir e tomar as devidas cautelas em relação à empresa, assumindo qualquer risco que daí pudessem [sic] surgir”. A Corte, além disso, equiparou a cegueira deliberada ao dolo eventual, incorrendo, portanto, na imprecisão dogmática já apontada.

Por mais que no caso em questão o manejo da Teoria da Cegueira Deliberada represente apenas um obiter dictum – isto é, um argumento periférico –, lançado a partir de fundamentação per relationem, é simbólico que a teoria em questão tenha ingressado na fundamentação decisória de que se valeu o Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina no caso em apreço. Ou seja, ainda que, hipoteticamente, fosse possível a condenação a título de dolo, optou o tribunal pelo acréscimo do “adorno hermenêutico”.([xv]) Esse simbolismo, vale dizer, é aprofundado diante da percepção de que a Teoria da Cegueira Deliberada foi manejada no julgamento de crimes tributários – aos quais, invariavelmente, está associada certa falta de cuidado em relação à autoria delitiva.

Se é certo que a Teoria da Cegueira Deliberada foi incorporada à prática judicial brasileira, sobretudo por meio de casos notórios, também parece correto constatar, que a aplicação dessa teoria tem se expandido para casos triviais, mais uma vez de forma irrefletida e sem o necessário filtro da dogmática penal – principalmente tendo-se em vista as possibilidades de tipo subjetivo elencadas pelo Código Penal.

Chiavelli Facenda Falavigno

Pós-doutora em Política Legislativa Penal pela Universidade de Málaga. Doutora em Direito Penal pela USP. Professora adjunta de Direito e Processo Penal da UFSC. Coordenadora do Grupo de Estudos Interinstitucional em Direito Penal Econômico (UFSC/Univali).

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7264-2171


Luis Irapuan Campelo Bessa Neto

Mestre em Direito pela UFSC. Especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra. Membro do Grupo de Estudos Interinstitucional em Direito Penal Econômico (UFSC/Univali).

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0124-5013


 Luiz Eduardo Dias Cardoso

Doutorando e mestre em Direito pela UFSC. Especialista em Direito Penal e Processo Penal (ABDConst). Membro do Grupo de Estudos Interinstitucional em Direito Penal Econômico (UFSC/Univali).

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9432-1379

([i]) MARCUS, Jonathan L. Model Penal Code Section 2.02(7) and Willful Blindness. The Yale Law Journal, v. 102, n. 8, p. 2231-2257, jun. 1993. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.2307/796865>. Acesso em: 14 jan. 2020.

([ii]) Sentença proferida na Ação Penal 2005.81.00.014586-0, que tramitou na 11ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Fortaleza, Seção Judiciária do Ceará.

([iii]) LUCCHESI, Guilherme. Acertando por acaso: uma análise da cegueira deliberada como fundamento para a condenação por Lavagem de Dinheiro no voto da Ministra Rosa Weber na APN 470. In: Jornal de Ciências Criminais, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 93-106, jul./dez. 2018.

([iv]) BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 141. Guilherme Lucchesi, todavia, aponta que “a equiparação entre ‘dever saber’ e dolo eventual é equívoco cometido pela doutrina contemporânea” (p.153). LUCCHESI, Guilherme. Punindo a culpa como dolo: o uso da cegueira deliberada no Brasil. São Paulo: Marcial Pons, 2018.

([v]) De acordo com a posição defendida por Greco, “Dolo é, ab initio, conhecimento, porque só o conhecimento gera domínio, e só o domínio fornece razões suficientemente fortes para fundamentar o tratamento mais severo dispensado aos casos de dolo. Estas razões são a maior necessidade de prevenção diante dos riscos que se dominam e a maior responsabilidade do autor por aquilo que ele realiza sob seu domínio.” (p. 903). GRECO, Luís. Dolo sem vontade. In: SILVA DIAS, Augusto. et al (Org.). Liber Amicorum de José de Sousa e Brito. Coimbra: Almedina, 2009, p. 885-905. Não se ignora, no entanto, a existência de posicionamentos doutrinários tradicionais divergentes.

([vi]) LUCCHESI, Guilherme Brenner. Acertando por acaso: uma análise da cegueira deliberada como fundamento para a condenação por lavagem de dinheiro no voto da Ministra Rosa Weber na APN 470. São Paulo, Jornal de Ciências Criminais, v. 1, n. 1, p. 93-106, jul./dez. 2018.

([vii]) Sobre a desassociação do dolo como vontade e sua perspectiva como “conhecimento do risco criado”, cite-se PUPPE, Ingeborg. Dolo eventual e culpa consciente. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 14, n. 58, p. 114-132, jan./fev. 2006.

([viii]) LUCCHESI, Guilherme Brenner. Punindo a culpa como dolo: o uso da cegueira deliberada no Brasil. São Paulo: Marcial Pons, 2018.

([ix]) GRECO, Luís. Dolo sem vontade. In: D’ALMEIDA, Luís Duarte; DIAS, Augusto Silva; MENDES, Paulo de Sousa; ALVES, João Lopes; RAPOSO, João António (Orgs.). Líber amicorum de José de Sousa Brito em comemoração do 70º aniversário: estudos de direito e filosofia. Coimbra: Almedina, 2009. p. 902.

([x]) Segundo Fábio Roberto D’Ávila, o artigo 13 do Código Penal exige que todo crime tenha resultado, não naturalístico, mas jurídico. Nas palavras do autor, “não se confunde com o resultado em uma perspectiva natural, entendido como modificação do mundo exterior, e tampouco com o objeto da ação. Trata-se do desvalor expresso pela ofensa a bens jurídico-penais, pela lesão ou perigo de lesão ao objeto de tutela da norma.” D’ÁVILA, Fábio Roberto. Tipo, Ilícito e Valor. Notas conceituais e sistemáticas. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 121, p. 99-126, jul./2016.

([xi]) Esse também foi o ponto central da crítica do autor à dita teoria em aula ministrada na Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo, no ano de 2016, cuja ata se encontra disponível no site da instituição: <https://direitosp.fgv.br/sites/direitosp.fgv.br/files/arquivos/ata_18.03.16_-_lui_s_greco_-_cegueira_deliberada. pdf>. Acesso em: 01 dez. 2019.

([xii]) LUCCHESI,  Guilherme Brenner. Punindo a culpa como dolo: o uso da cegueira deliberada no Brasil. São Paulo: Marcial Pons, 2018.

([xiii]) Disponível em: <http://busca.tjsc.jus.br/jurisprudencia/#formulario_ancora>. Acesso em: 25 nov. 2019.

([xiv]) TJSC, Apelação Criminal 0900007-62.2017.8.24.0119, de Garuva/SC.

([xv]) Aqui vale mencionar a crítica de Lucchesi, no sentido de que a teoria, como tantas outras, passa a constituir um “modismo”, para que magistrado se mostre “atualizado” com sua utilização. LUCCHESI, op. cit., p. 191.

Recebido em: 05/12/2019

Aprovado em: 09/12/2019

Versão final: 17/01/2020

O sistema criminal brasileiro em seu labirinto

Resumo: O sistema criminal brasileiro encontra-se em um labirinto de falta de ideias. Está derrotado ante reformas que divulgam seguir modelos adversariais, como os dos acordos criminais, mas que não ocultam ainda a esguelha inquisitória. Não se discute se o sistema processual americano deva ser visto como mais perfeito ao nosso sistema ou empecilho ainda maior a um sistema criminal já acéfalo por inúmeros reparos aleatórios.

Palavras-chave: Direito comparado. Traduções jurídicas. Acordos criminais. Reforma processual penal. Labirinto.

Abstract: The Brazilian criminal system is in a maze of lack of ideas. It is defeated before reforms that disclose following adversarial models, such as those of criminal agreements, but which do not yet conceal the inquisitory side. It is not disputed whether the American procedural system should be seen as more perfect to our system or even greater hindrance to an already crippled criminal system by numerous random repairs.

Keywords: Comparative law. Legal translations. Criminal agreements. Criminal procedural reform. Legal maze.

Autor: Renato Tavares de Paula

O magistral Gabriel Garcia Marquez em O General em seu Labirinto([i]) relata os últimos dias de vida do libertador Simon Bolívar. Sem amigos, consumido pela febre, Bolívar delira, e em seus desatinos surgem suas derrotas e vitórias, em uma perturbadora agonia.

A mente febril de Bolívar é tomada por um labirinto no qual se misturam visões e lembranças. Atordoado, não consegue encontrar qualquer saída frente à sua jornada inevitável para a morte. A analogia com o sistema criminal brasileiro não poderia ser mais poderosa.

O sistema criminal brasileiro tem importado elementos da tradição de common law não adequados ao Sistema de Justiça Criminal pátrio, tornando impróprios os movimentos de recepção de padrões legislativos internacionais.([ii]) Dessa forma, conclui-se no decorrer do texto que o caminho que se trilha em termos de utilização de Direito Processual Penal Comparado no Brasil é aleatório (no caso deste texto, se fala especificamente dos acordos criminais), e de ininteligível motivação.([iii])

As opções de política criminal se alicerçam em puras razões pragmáticas e são produzidas pelo desejo de seguir modelos de maior prestígio e reformas com vistas à melhora de situação econômica, sem qualquer cuidado com a proliferação de características mais ligadas a determinados sistemas jurídicos desconexos do nosso ordenamento jurídico. ([iv]) Em outras palavras, os países periféricos acabam tratando o Direito como política econômico-financeira, e se rendem às regras do jogo político-econômico do capital mundial. Por outro lado, países que dominam os setores econômico e financeiro tratam a soberania como questão de direito.([v])

Atualmente tramita na Câmara dos Deputados a proposta encaminhada pelo atual ministro da Justiça, Sérgio Moro, projeto de lei 882/2019,([vi]) o qual pretende introduzir no Código de Processo Penal, em seus artigos 28-A e 395-A, mecanismos de acordos criminais equiparáveis ao plea bargaining americano.

Para tal, apresentou a seguinte justificativa: “O art. 28-A. estende a possibilidade de acordo quando o acusado confessa o crime de pena máxima inferior a quatro anos, praticado sem violência ou grave ameaça. A tendência ao acordo, seja lá qual nome receba, é inevitável. O antigo sistema da obrigatoriedade da ação penal não corresponde aos anseios de um país com mais de 200 milhões de habitantes e complexos casos criminais. Desde 1995, a Lei nº 9.099 permite transação nos crimes de menor potencial ofensivo e suspensão do processo nos apenados com o mínimo de um ano de prisão. Na esfera ambiental, o Termo de Ajustamento de Conduta vige desde a Lei nº 7.347, de 1985. Os acordos entraram na pauta, inclusive, do poder público, que hoje pode submeter-se à mediação (Lei nº 13.140, de 2015). O acordo descongestiona os serviços judiciários, deixando ao Juízo tempo para os crimes mais graves. Porém, neste novo tipo de acordo que ora se propõe, as partes submetem-se a uma série de requisitos, citando-se como exemplo a proibição de ser concedida a quem já o tenha recebido nos últimos cinco anos. Por outro lado, pode o juiz recusar a proposta se considerar inadequadas ou insuficientes as condições celebradas. É dizer, a homologação judicial dá a necessária segurança à avença”.([vii])

Mantém o projeto de lei em análise a mesma fundamentação acima em relação ao novel artigo 395 do Código de Processo Penal, apenas reforçando que nesse caso já se supõe a existência de denúncia recebida.

Pois bem, para a análise da proposta acima, me valho de conhecido símbolo de circulação de ideias, qual seja, a metáfora da tradução jurídica de Máximo Langer,([viii]) que, ao criticar a estrutura do transplante jurídico de Alan Watson,([ix]) no estudo do deslocamento de instituições jurídicas entre diferentes sistemas, propõe a concepção do termo “tradução jurídica”, considerando-se assim a transformação do significado do instituto jurídico ao ser adotado por outro sistema legal.

O ponto de partida de Langer é que a difusão do termo “transplantes” é errada, porque o próprio termo denota um mero “recorta e cola” entre os sistemas jurídicos em comparação. A “tradução”, ao invés do transplante, significaria um método mais eficiente para a abordagem da circulação de ideias, regras, práticas e instituições jurídicas. Segundo Máximo Langer, “a metáfora da tradução retém a dimensão comparativa que fez com que a metáfora do transplante fosse tão poderosa e que falta na metáfora do ‘legal irritant’. Com relação aos sistemas jurídicos, a metáfora da tradução distingue a fonte linguística ou sistema jurídico – de onde vem a ideia ou a instituição – do sistema de destino – na qual a ideia jurídica ou instituição é traduzida. A metáfora da tradução também permite a distinção a ser feita entre o ‘texto’ original – a ideia ou instituição tal qual desenvolvida no sistema jurídico de fonte – e o texto traduzido”.([x])

Nessa quadra, a análise da rejeição ou não do instrumento transplantado também deve perquirir a diferença entre os sistemas criminais adversarial (estadunidense) e inquisitório (civil law)([xi]) que parte de uma diferença básica entre a atuação dos atores jurídicos do sistema criminal, qual seja, o modelo de como concebem o processo penal.

Duas observações são importantes nessa quadra. A primeira é que mencionada diferença é baseada na doutrina de Máximo Langer([xii]) que demonstra que as diferenças estruturais entre a concepção adversarial estadunidense de processo penal e a concepção inquisitorial da Europa continental e latino-americana de processo penal são tão densas que reformas individuais inspiradas em modelos estadunidenses são inábeis em impelir esses processos penais inquisitórios na direção do sistema adversarial estadunidense. A outra é que aqui se está fazendo a comparação entre o sistema penal inquisitorial e adversarial, como mostrado acima, e não a comparação já clássica na doutrina processual brasileira entre o sistema penal acusatório e o sistema penal inquisitivo.

Avancemos. Pois bem, o modelo de disputa é uma característica intrínseca do sistema adversarial; e o modelo da investigação oficial, uma característica do modelo inquisitorial. O modelo de disputa concebe o processo penal como uma contenda entre acusação e defesa perante um árbitro passivo; já o sistema inquisitorial concebe o processo penal como uma investigação oficial levada a cabo por agentes estatais a fim de determinar a verdade.([xiii])

A análise do projeto de lei em testilha permite claramente concluir que o mesmo pretende se hastear no sistema adversarial, mormente no plea bargaining. Tal instrumento, nos Estados Unidos, permite que acusação e a defesa possam entrar em acordo sobre o caso criminal sujeito à homologação judicial. O acordo pode se apresentar de diversas formas, mas normalmente consiste em o réu se declarar culpado de um crime (guilty plea) ou de distintos crimes. Em troca, a acusação abandona outras acusações, aceita que o réu se declare culpado de crimes de menor gravidade ou solicita que o réu receba uma certa sentença.

Na definição de Claudio José Pereira,([xiv]) “trata-se de uma modalidade de troca consciente, sem obstáculos da legislação, ligada a um poder discricionário amplo de atuação do Ministério Público, onde há oportunidade de decidir quando deve ou não continuar com uma investigação, ou estabelecendo condições de imunidade a uma testemunha, declarações de culpabilidade e recomendações ao Tribunal, decidindo quando, como e por quais crimes o acusado será ou não submetido a persecução penal, podendo inclusive dela desistir depois de transacionar”.

De acordo com Máximo Langer, nada é mais adversarial que o plea bargaining e guilty plea: “Muitas características do processo penal anglo-americano podem ser explicadas através deste modelo. Por exemplo, ampla discricionariedade acusatória combina com este modelo porque a acusação, como uma das partes é dona da disputa, pode não acreditar que há controvérsia em determinado caso ou pode decidir que a controvérsia não é digna de persecução e, deste modo, não está obrigado a ajuizar a ação. Guilty pleas se encaixam neste modelo porque a defesa, assim como a outra parte da disputa, pode reconhecer que a outra parte está correta e então resolver a disputa; a determinação da culpa ou inocência acaba e o caso passa para a fase de sentenciamento”.([xv])

Consequentemente, existem poucas práticas que são mais incompatíveis com o sistema inquisitorial, baseado no modelo da investigação oficial do que o plea bargaining, justamente porque no Brasil o promotor não é uma parte do processo, mas agente estatal que apura a verdade real. Portanto, neste modelo, a verdade “real” deve ser acurada pelo promotor, não pode ser negociada nem barganhada. Sendo assim, existe apenas um inquérito, cuja investigação é feita exclusivamente pelo Estado; não há um caso para a acusação e outro para a defesa, e os interrogatórios são iniciados e direcionados pelo tribunal e não pelas partes.([xvi])

De acordo com o modelo brasileiro previsto no artigo 28-A, antes do início dos procedimentos formais, a acusação pode oferecer ao acusado a opção de deslocar o seu processo de um procedimento criminal convencional em troca de uma admissão de culpa e o cumprimento de algumas condições, como reparar o dano; renunciar voluntariamente a bens e direitos, como instrumentos, produto ou proveito do crime; prestar serviço à comunidade; pagar prestação pecuniária a entidade pública ou de interesse social. Por outro lado, o novel acordo criminal brasileiro só pode ser aplicado, antes do recebimento da denúncia, em crimes sem violência ou grave ameaça, e com pena máxima abstrata do delito não superior a quatro anos, ou seja, seria um mecanismo a ser aplicado apenas em infrações mais leves.

Neste ponto já é possível perceber que o instituto brasileiro pouco se parece com o plea bargaining, não ocorrendo adequadamente o transplante jurídico entre os diferentes sistemas. Existem algumas similaridades entre os procedimentos do plea bargaining estadunidense e o brasileiro: ambos podem incluir negociações entre o promotor e o acusado, e este deve admitir a sua culpa como parte do acordo. As semelhanças, no entanto, cessam por aqui.

Referido acordo apenas alargou a possibilidade da realização de transação penal para delitos de até 04 anos de reclusão. Mantém a mesma ideia da transação penal ao não gerar quaisquer efeitos civis ou administrativos, o que aproxima o acordo mais do nolo contendere americano (nos Estados Unidos, pode o réu optar por apresentar o nolo contendere, que é uma manifestação de reconhecimento dos fatos descritos pela acusação, sem, porém, os efeitos de uma admissão formal de culpa).

Assim, a reforma pretendida pelo artigo 28-A possui pretensão única sobre a eficiência do processo, sem qualquer preocupação com a higidez do sistema ou a adoção de determinada política criminal. No fundo, o projeto propõe a adoção de penas restritivas de direito com as mesmas condicionantes previstas no artigo 44 do Código Penal, com a mera sutileza de abreviar o procedimento.

As diferenças entre o plea bargaining estadunidense e o acordo de não persecução criminal brasileira presente no artigo 395-A também são expressivos.

Primeiro, enquanto a aplicação do plea bargaining encurta os procedimentos criminais regulares, no sentido de que o julgamento não é necessário para determinar a culpa ou inocência, a aplicação do acordo brasileiro evita diretamente tais procedimentos. Segundo, no plea bargaining o promotor está numa posição negocial idêntica com a defesa, justamente pelo viés adversarial do sistema. No Brasil, o promotor não negocia com igualdade com a parte adversa, pois é aquele agente do estado que exerce controle sobre uma pessoa que violou a lei e pode cometer novos delitos no futuro. O acusado acolhe a oferta do promotor não como uma parte que pode findar a disputa com o seu consentimento, mas como parte de seu próprio processo de reabilitação e ressocialização.

Note-se ainda que, embora seja um procedimento através do qual a acusação e a defesa podem negociar ativamente penas, ao juiz não é atribuída uma posição relativamente passiva, já que lhe foi deferida pela legislação uma participação ativa nesses acordos, podendo até absolver o acusado. A admissão de culpa então, não é entendida exatamente como um guilty plea, como nos Estados Unidos, mas como uma confissão que pode ser desconsiderada pelo juízo (§7º do novel artigo 395-A).

Portanto, o acordo previsto no artigo 395-A fica em uma encruzilhada, porque mesmo que inspirado no plea bargaining, não assume o modelo de disputa, principalmente porque não trata o acusado como uma parte igual à acusação. Assim, falha pelo equivocado transplante do sistema americano.

Os mecanismos de acordos consensuais, de tal modo, seriam adotados nomeadamente por razões pragmáticas de eficiência do processo, ao invés de ser o resultado de profundas influências culturais do sistema estadunidense sobre o sistema brasileiro.([xvii])

Gabriel Garcia Marques ao final do livro O general em seu Labirinto descreve assim os últimos fulgores da vida do Libertador: “O general não prestou atenção à habilidade da resposta, porque estremeceu à revelação deslumbrante de que a corrida louca entre seus males e seus sonhos chegava naquele instante à meta final. O resto eram as trevas. – Carajos! – suspirou. – Como vou sair deste labirinto?”.([xviii])

Nada diferente do sistema criminal brasileiro, que se encontra em um labirinto legal, derrotado ante reformas que divulgam seguir modelos adversariais, mas que não ocultam o soslaio inquisitório ainda reinante. Não se discute minimamente se, por opção político-criminal, o sistema processual americano e suas características deva ser visto como mais perfeito ou adequado às nossas vicissitudes ou empecilho ainda maior a um sistema criminal já acéfalo e retalhado por inúmeras reformas ocasionais.

Pelo contrário, acaba-se por importar acriticamente pedaços de sistemas jurídicos diversos sem qualquer compromisso sistemático ou de justificativa, induzindo o sistema criminal pátrio a um complexo labirinto.

Renato Tavares de Paula

Bacharel em Direito pela USP. Defensor Público Federal em Ribeirão Preto/SP.

ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7762-4039

(1) MÁRQUEZ, Gabriel Garcia. O general em seu labirinto. Tradução de Moacir Werneck de Castro. Rio de Janeiro: Record, 2000.

(2) SAAD-DINIZ, Eduardo; CASAS, Fábio; COSTA, Rodrigo de Souza (org.). Modernas técnicas de investigação e justiça penal. São Paulo: LiberArs, 2015.

(3) VIEIRA, Renato Stanziola. O que vem depois dos “legal transplants”? Uma análise do processo penal brasileiro atual à luz de direito comparado. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, v. 4, n. 2, p. 767-806, mai./set. 2018. Disponível em: <https://doi.org/10.22197/rbdpp.v4i2.133>.

(4) GRAZIADEI, Michele. Comparative law as the study of transplants and receptions. In: REINMANN, Mathias; ZIMMERMANN, Reinhard (ed.). The Oxford Handbook of Comparative Law. Oxford: Oxford University Press, 2006.

(5) FARIA, José Eduardo. Sociologia jurídica: direito e conjuntura. São Paulo. Saraiva, 2010. p.74.

(6) Art. 3º: O Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal, passa a vigorar com as seguintes alterações: “Art. 28-A. O Ministério Público ou o querelante poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime, se não for hipótese de arquivamento e se o investigado tiver confessado circunstanciadamente a prática de infração penal, sem violência ou grave ameaça, e com pena máxima não superior a quatro anos, mediante o cumprimento das seguintes condições, ajustadas cumulativa ou alternativamente: I - reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto impossibilidade de fazê-lo; II - renunciar voluntariamente a bens e direitos, indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime; III - prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução; IV - pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Decreto Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou V - cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada. § 1º Para aferição da pena máxima cominada ao delito a que se refere o caput, serão consideradas as causas de aumento e diminuição aplicáveis ao caso concreto. § 2º O disposto no caput não se aplica nas seguintes hipóteses: I - se for cabível transação penal de competência dos Juizados Especiais Criminais, nos termos da lei; II - se o investigado for reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas; III - ter sido o agente beneficiado nos cinco anos anteriores ao cometimento da infração, em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo; e IV - os antecedentes, a conduta social, a personalidade do agente e os motivos e as circunstâncias não indicarem ser necessária e suficiente a adoção da medida. § 3º O acordo de não persecução penal será formalizado por escrito e será firmado pelo membro do Ministério Público, pelo investigado e por seu defensor. § 4º Para a homologação do acordo de não persecução penal, será realizada audiência na qual o juiz deverá verificar a sua voluntariedade, por meio da oitiva do investigado na presença do seu defensor, e sua legalidade. § 5º Se o juiz considerar inadequadas ou insuficientes as condições dispostas no acordo de não persecução penal, devolverá os autos ao Ministério Público para que seja reformulada a proposta de acordo, com concordância do investigado e seu defensor. § 6º Homologado judicialmente o acordo de não persecução penal, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para que inicie sua execução perante o juízo de execução penal. § 7º O juiz poderá recusar homologação à proposta que não atender aos requisitos legais ou quando não for realizada a adequação a que se refere o § 5º. § 8º Recusada a homologação, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para a análise da necessidade de complementação das investigações ou o oferecimento da denúncia. § 9º A vítima será intimada da homologação do acordo de não persecução penal e de seu descumprimento. § 10. Descumpridas quaisquer das condições estipuladas no acordo de não persecução penal, o Ministério Público deverá comunicar ao juízo, para fins de sua rescisão e posterior oferecimento de denúncia. §11. O descumprimento do acordo de não persecução penal pelo investigado também poderá ser utilizado pelo Ministério Público como justificativa para o eventual não oferecimento de suspensão condicional do processo. § 12. A celebração e o cumprimento do acordo de não persecução penal não constará de certidão de antecedentes criminais, exceto para os fins previstos no inciso III do § 2º.  § 13. Cumprido integralmente o acordo de não persecução penal, o juízo competente decretará a extinção de punibilidade. § 14. Não correrá a prescrição durante a vigência de acordo de não persecução penal.” "Art. 395-A. Após o recebimento da denúncia ou da queixa e até o início da instrução, o Ministério Público ou o querelante e o acusado, assistido por seu defensor, poderão requerer mediante acordo penal a aplicação imediata das penas. § 1º São requisitos do acordo de que trata o caput deste artigo: I - a confissão circunstanciada da prática da infração penal; II - o requerimento de que a pena privativa de liberdade seja aplicada dentro dos parâmetros legais e considerando as circunstâncias do caso penal, com a sugestão de penas em concreto ao juiz; e III - a expressa manifestação das partes no sentido de dispensar a produção de provas por elas indicadas e de renunciar ao direito de recurso. § 2º As penas poderão ser diminuídas em até a metade ou poderá ser alterado o regime de cumprimento das penas ou promovida a substituição da pena privativa por restritiva de direitos, segundo a gravidade do crime, as circunstâncias do caso e o grau de colaboração do acusado para a rápida solução do processo. § 3º Se houver cominação de pena de multa, esta deverá constar do acordo. § 4º Se houver produto ou proveito da infração identificado, ou bem de valor equivalente, a sua destinação deverá constar do acordo. § 5º Se houver vítima decorrente da infração, o acordo deverá prever valor mínimo para a reparação dos danos por ela sofridos, sem prejuízo do direito da vítima de demandar indenização complementar no juízo cível. § 6º Para homologação do acordo, será realizada audiência na qual o juiz deverá verificar a sua legalidade e voluntariedade, devendo, para este fim, ouvir o acusado na presença do seu defensor. § 7º O juiz não homologará o acordo se a proposta de penas formulada pelas partes for manifestamente ilegal ou manifestamente desproporcional à infração ou se as provas existentes no processo forem manifestamente insuficientes para uma condenação criminal. § 8º Para todos os efeitos, o acordo homologado é considerado sentença condenatória. § 9º Se, por qualquer motivo, o acordo não for homologado, será ele desentranhado dos autos, ficando as partes proibidas de fazer quaisquer referências aos termos e condições então pactuados, tampouco o juiz em qualquer ato decisório. § 10. No caso de acusado reincidente ou havendo elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, o acordo deverá incluir o cumprimento de parcela da pena em regime fechado, salvo se insignificantes as infrações penais pretéritas. § 11. A celebração do acordo exige a concordância de todas as partes, não sendo a falta de assentimento suprível por decisão judicial, e o Ministério Público ou o querelante poderão deixar de celebrar o acordo com base na gravidade e nas circunstâncias da infração penal."

(7) Disponível em: <www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1712111&filename =Tramitacao-PL+882/2019>. p. 23. Acesso em: 19 mar. 2019

(8) LANGER, Maximo. From legal transplants to legal translations: the globalization of plea bargaining and the americanization thesis in criminal procedure. Harvard International Law Journal, v. 45, n. 01, p. 01-65, 2004.

(9)WATSON, Alan. Legal transplants and law reform, 92. The Law Quarterly Review, p. 79-84, 1976. (10) Idem, ibidem.

(11) Id. ibid., p. 47.

(12) Id. ibid., p. 50-51.

(13) Id. ibid., p. 26.

(14) PEREIRA, Claudio José. Princípio da oportunidade e justiça penal negociada. São Paulo. Editora Juarez de Oliveira, 2002.

(15) LANGER, op. cit., p. 51.

(16) Id. ibid., p. 54.

(17) Segundo dados do CNJ, durante o ano de 2017, ingressaram 29,1 milhões de novos processos. O Judiciário chegou ao final do ano de 2017 com um acervo de 80,1 milhões de processos que aguardam uma solução definitiva. No período de 2009 a 2017, a taxa de crescimento médio do estoque foi de 4% ao ano. O crescimento acumulado no período 2009-2017 foi de 31,9%, ou seja, acréscimo de 19,4 milhões de processos. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/87512-cnj-apresenta-justica-em-numeros-2018-com-dados-dos-90-tribunais. Acesso em 20/03/2019>.

(18) MÁRQUEZ, op. cit., p. 184.

Recebido em: 28/03/2019

Aprovado em: 15/07/2019

Versão final: 14/10/2019

Cortes Internacionais e suas decisões comentadas: O Caso Álvarez Ramos vs. Venezuela: limites à tutela penal da honra e da liberdade de expressão e crítica

Resumo: O artigo analisa o uso do direito penal para proteger a honra e a reputação em casos de conflito com a liberdade de expressão e crítica, com foco no recente Caso Álvarez Ramos da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Palavras-chave: Corte Interamericana de Direitos Humanos, crimes contra a honra, liberdade de expressão, direitos humanos.

Abstract: the article analyzes the use of punitive response through criminal prosecution to protect honor and reputation when conflicted with freedom of speech, focusing on the recent ruling of the Inter-American Court of Human Rights on the Case Álvaro Ramos vs. Venezuela.

Keywords: Inter-American Court of Human Rights; freedom of speech; criminal liability to protect honor and reputation; human rights.

Autor: Paula Ritzmann Torres

Postagens e publicações contra figuras públicas com dizeres “Ladrão”, “corrupto”, “bandido”, “tem que pegar cem anos de cadeia”. Difusão de informações privadas, mas de interesse público, entre autoridades judiciais e membros do ministério público, em sites de comunicação. Fake news, ataques a “honorabilidade e segurança” de altas instituições judiciais e instauração de inquérito policial de ofício. Em comum nos exemplos (reais e atuais) citados: a liberdade de expressão ocupando o centro do palco jurídico.

A liberdade de manifestação de ideias, informações, pensamentos e ideais de qualquer natureza, nas mais diversas formas, é importante escudo contra a atuação abusiva estatal e serve de fomento à democracia e à tolerância nas sociedades contemporâneas, sendo mencionada nos principais textos internacionais, de natureza convencional e soft law, tais quais a Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigo XIX), o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (artigo 18),  a Convenção Europeia de Direitos Humanos (artigo 10), a Convenção Americana de Direitos Humanos (artigo 13) e a Declaração de princípios sobre liberdade de expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. No âmbito interno, as diversas facetas da liberdade de expressão estão espelhadas, entre outros, no artigo 5º, IV, VI e IX, e 220 da Constituição Federal, e em diversas normas infraconstitucionais.([i])

Contudo, a realidade é de conflito entre direitos e compreende a concorrência da liberdade de expressão com outros valores, como a dignidade humana, proteção da honra, privacidade, crenças religiosas, costumes. No Brasil, vigora a liberdade de expressão responsável, com limites (a exemplo da vedação do anonimato, direito de resposta, restrições a propagandas, classificação indicativas) e possibilidades de responsabilização (cível, administrativa ou penal) para aquele que dela abusa. Entre os instrumentos legítimos para delimitar o exercício da liberdade de expressão, questiona-se em que medida o caráter de ultima ratio do direito penal admite o uso de respostas penais para a proteção dos valores eventualmente afetados no exercício (abusivo ou não) desse direito.

Recentemente, em 30 de agosto de 2019, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) deu importante passo na evolução dos parâmetros internacionais sobre os limites à tutela penal da honra violada pela liberdade de expressão no julgamento do caso Álvarez Ramos vs. Venezuela.([ii]) E a decisão nos afeta graças ao comprometimento do Estado brasileiro, nos termos do artigo 5º, parágrafo 2º, da Constituição Federal, com o respeito aos direitos e obrigações internacionais de direitos humanos e ao reconhecimento da jurisdição obrigatória da Corte IDH (Decreto 4.463/2002), a cujas decisões se submete, sob pena de responsabilização internacional.

O pano de fundo do Caso Álvarez Ramos vs. Venezuela remonta a 23 de maio de 2003, quando Tulio Álvarez Ramos publicou o artigo “Asaltada Caja de Ahorro de la Asamblea Nacional”, na coluna “Expedientes Negros” do periódico “Asi es la Notícia”, no qual questionava terem sido gastos, pelo então presidente da Assembleia Nacional, milhões de bolívares da poupança dos trabalhadores no pagamento de despesas de membros do legislativo.

Em dezembro do mesmo ano, o então presidente da Assembleia Nacional venezuelana ofereceu uma ação contra Álvares Ramos perante o Tribunal de Controle do Circuito Judicial Penal da Região Metropolitana, imputando-lhe a prática do crime de difamação, tipificado no artigo 444 do Código Penal venezuelano. Após a instrução, em 10 de fevereiro de 2005, foi proferida sentença penal que condenou Álvarez Ramos a 2 anos e 3 meses de prisão pela prática de difamação agravada continuada, assim como a pena acessória de inabilitação política. Interposto recurso de apelação à Corte de Apelação do Circuito Judicial Penal da Região Metropolitana e recurso de cassação à Sala de Cassação Penal do Tribunal Supremo de Justiça, ambos foram desprovidos e a sentença tornou-se definitiva em 3 de julho de 2006.

Álvares Ramos peticionou, então, à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, ainda no ano de 2006. O caso foi registrado sob o número 12.663 e o informe de admissibilidade foi publicado em 24 de julho de 2008. Passados quase nove anos, em 26 de janeiro de 2017, veio a público o primeiro informe (4/17), constatando diversas violações a direitos humanos, relacionadas, entre outros, à liberdade de expressão e inabilitação política, nos termos dos artigos 13 (liberdade de pensamento e expressão) e 23 (direitos políticos) em relação aos artigos 1.1 (obrigação de respeitar direitos) da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH). O Estado da Venezuela foi notificado e, esgotado o prazo de dois meses sem a reparação aos danos causados, o caso foi submetido à Corte IDH em 05 de julho de 2017. 

Face à necessidade de superação do passado ditatorial nas Américas, a Corte IDH já possui uma linha jurisprudencial temática sobre aspectos da liberdade de expressão, com destaque para a Opinião Consultiva OC-5/85,([iii]) sobre a obrigatoriedade de diploma para o exercício da profissão de jornalista; para o Caso A última tentação de Cristo vs. Chile, ([iv]), sobre censura cinematográfica; e para o caso Caso Carvajal Carvajal e outros vs. Colômbia,([v]) sobre o dever de investigação de casos de homicídios de jornalistas em decorrência de sua atuação profissional. Especificamente na área penal, grifa-se o Caso Palamara Iribarne vs. Chile,([vi]) sobre a (in)convencionalidade do crime de desacato face à liberdade de expressão protegida pela CADH.([vii])

O tema central do Caso Álvarez Ramos vs. Venezuela se insere nesse contexto: a análise da compatibilidade entre, de um lado, a liberdade de pensamento e expressão, prevista no artigo 13([viii]) da CADH e, de outro, o uso do direito penal (tipificação da conduta como crime contra a honra) para reprimir a publicação de discursos críticos a autoridades públicas.

Reafirmando a importância da tolerância nas sociedades democráticas, a Corte IDH reiterou o seu entendimento sobre o duplo conteúdo do direito à liberdade de pensamento e expressão, compreendendo a (i) dimensão individual de buscar, receber e difundir ideias e informações de toda índole, além da (ii) dimensão social, expressa no direito coletivo de receber outros pontos de vista. Reforça-se, desse modo, o dever do Estado de fomentar o pluralismo informativo, promovendo a equidade na participação de diferentes informações no debate público. 

A sentença abarcou, a seguir, as restrições permitidas à liberdade de expressão, admitindo a possibilidade de responsabilização penal como meio de proteção contra o exercício abusivo desse direito, especialmente quando se choca com outro direito previsto no artigo 11([ix]) da CADH: o direito à proteção da honra e da dignidade. Ressalta-se, nesse ponto, que o posicionamento da Corte IDH em permitir, ainda que com contornos definidos, o uso de sanções penais em casos que envolvem liberdade de expressão, diverge de outros órgãos do sistema interamericano de proteção de direitos humanos. A Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos estimula o pleno exercício da liberdade de expressão como forma de enraizamento da democracia no continente americano, se posicionando frontalmente contrária a qualquer ato de criminalização da liberdade de expressão, o que inclui a tipificação de crimes contra a honra e reputação.([x])

Volvendo ao caso Álvares Ramos, a Corte IDH alertou, que uma resposta penal como baliza à liberdade de expressão deve ser extremamente limitada para que não resulte em censura prévia. Por isso, foi reiterada a jurisprudência fixada no Caso Herrera Ulloa Vs. Costa Rica ([xi]), no Caso Mémoli Vs. Argentina([xii]) e no Caso Fontevecchia y D’amico vs. Argentina([xiii]), que condiciona o uso do direito penal para a proteção da honra e da reputação a três requisitos: (i) possuir previsão legal no sentido formal e material; (ii) resguardar direitos previstos na Convenção Americana de Direitos Humanos, entre eles reputação, segurança nacional, saúde, ordem ou moral pública; e (iii) ser necessário em uma sociedade democrática, requisito que inclui idoneidade, necessidade e proporcionalidade. Assim, a medida penal deve ser fixada previamente, de forma clara e precisa, em lei, cumprir fins legítimos e permitidos, ser ponderada com outros direitos e proporcional à situação tutelada.

Nesse panorama, as declarações que são parte do debate público em uma sociedade democrática demandam proteção consoante com os princípios do pluralismo, não admitindo limitação pelo direito penal. A Corte IDH definiu três elementos concorrentes para que uma informação seja considerada parte do debate público: (i) a pessoa vinculada à informação  seja funcionária pública à época  da sua veiculação (elemento subjetivo); (ii) que a informação seja relativa ao exercício do cargo público (elemento funcional); e (iii) o tema tenha relevância pública (elemento material). Especial ênfase foi dada à proteção do direito de crítica como faceta da liberdade de expressão, a qual inclui as informações e opiniões que chocam, irritam ou inquietam funcionários públicos, citando como exemplo a crítica à atuação dos juízes (Caso Kimel vs. Argentina([xiv])) e o uso de linguagem enérgica (no Caso Lagos del Campo vs. Peru([xv])).

Aplicando esses parâmetros ao caso, considerou-se que a informação veiculada por Álvarez Ramos era inerente ao debate público e estava protegida pelo direito à crítica, mesmo veiculando conteúdo incômodo. Isso porque o conhecimento e os questionamentos sobre o funcionamento do Estado e sobre temas de interesse geral fazem parte do pluralismo democrático e “as críticas aos funcionários públicos não são somente válidas como necessárias”.([xvi])

Em decorrência, a Corte IDH analisou a compatibilidade entre a CADH e os meios judiciais adotados pelo então presidente da Assembleia Nacional da Venezuela, funcionário público cuja honra foi afetada pela publicação de Álvarez Ramos, especificamente o processo e subsequente condenação penal de Álvarez Ramos pelo crime de difamação.

Para a Corte IDH, a persecução penal é a medida mais restritiva ao exercício da liberdade de expressão, devendo ser usada excepcionalmente, quando estritamente necessária para proteger uma necessidade social imperiosa, sob pena de converter-se em uso abusivo do poder punitivo do Estado. A despeito da omissão e ambiguidade quanto ao conteúdo de tais expressões, foi definido que os discursos protegidos por interesse público e pelo direito à crítica, tal qual o de Álvarez Ramos, não justificam uma resposta penal do Estado para proteção da honra, pois eles têm a função de lançar luzes sobre condutas de funcionários públicos cujo controle atende a um interesse público.

A sentença trouxe ainda consideração específica sobre o exercício da liberdade de expressão no jornalismo, constatando que a conduta de jornalistas, se abusiva ou de má-fé, eventualmente pode ensejar somente respostas cíveis, porém não deve ser enquadrada como conduta tipificada na lei penal, pois nada mais é do que o exercício livre de uma atividade intelectual e profissional essencial à democracia protegida pela CADH.

A Corte IDH concluiu, nesse ponto, que a condenação penal imposta a Álvarez Ramos pelo Estado da Venezuela violou o direito à liberdade de expressão previsto no artigo 13.1 e 13.2 com relação ao artigo 1.1 da CADH, bem como o direito ao exercício de direitos políticos, previsto no artigo 23 da CADH, ao declarar a inabilitação política como decorrência da sua condenação penal.

Três foram as modalidades de reparação determinadas: cessação do ilícito, com a adoção de medidas para tornar sem efeito a sentença penal condenatória e todas as suas consequências (incluindo antecedentes penais, administrativos, eleitorais e policiais), satisfação, com a publicação da sentença, e o pagamento de indenização por dano material (U$ 10.000,00), imaterial (U$ 25.000,00) e custas (U$ 107.100,00). 

Além de reafirmar a jurisprudência temática da Corte IDH em diversos aspectos gerais sobre a liberdade de expressão, o Caso Álvarez Ramos vs. Venezuela possui aspectos inéditos no sistema interamericano de proteção dos direitos humanos relativamente aos instrumentos jurídicos legítimos contra a crítica direcionada a pessoas públicas ou a assuntos de interesse coletivo.

No império das redes sociais, a câmera e o teclado substituem o discurso e, com um click, multiplicam-se publicações com opiniões e questionamentos ríspidos, acalorados e mordazes contra figuras proeminentes. E isso é natural, pois os meios de comunicação digital potencializam a cobrança e reforçam o direito de crítica aos ocupantes de cargos eletivos ou a atuações públicas.

É do próprio conceito de democracia a demanda por transparência institucional e a sujeição de figuras públicas a um maior escrutínio popular. Afirmações contundentes e constrangedoras perdem o matiz ofensivo e se tornam parte do ônus da função pública, não podendo esses ofendidos reclamar o mesmo nível de proteção à honra e privacidade do cidadão comum. Consequentemente, não há alternativa a não ser afastar o caráter punitivista que recai sobre a crítica e as opiniões a personalidades públicas, já que os instrumentos penais não passam no teste da proporcionalidade([xvii]) e o uso desarrazoado de sanções penais na defesa de um suposto direito à honra pode caracterizar censura indireta com o objetivo de desestimular o gozo da liberdade de expressão e manifestação social pacífica.([xviii])

O novo precedente da Corte IDH segue a tendência internacional, que privilegia, lato sensu, as liberdades de pensamento, expressão e informação. Na Corte Europeia de Direitos Humanos, em respeito ao pluralismo das sociedades democráticas, há tempos a honra cede lugar no debate de questões de interesse público, afastando o direito penal do rol de respostas legítimas contra o abuso da liberdade de expressão.([xix]) 

No Brasil, a esfera penal de tutela da honra já possui menor espaço no contexto político-eleitoral, reconhecendo-se que as discussões políticas sujeitam-se a critério de especial tolerância, com juízos de valor sobre as qualidades e defeitos dos candidatos, o que tem gerado interpretação mais restrita dos artigos 324 a 326 do Código Eleitoral, que tipificam a calúnia, difamação e injúria eleitorais.([xx]) Também, em maior número, surgem decisões de rejeição de denúncia ou absolvição sumária por atipicidade em casos de imputação de crimes contra a honra de políticos, funcionários públicos ou figuras proeminentes, tal qual ex-presidentes, presidentes de confederações esportivas, ministros de Estado e presidentes de associações de profissões.([xxi]) Outro aspecto da tutela penal à liberdade de expressão em discussão no Brasil é a tipicidade da conduta de desacato e sua convencionalidade com a CADH, com decisões divergentes no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal, prevalecendo, no momento, a posição pela manutenção do artigo 331 do Código Penal.([xxii])

O tema é atual e oportuno. A Corte IDH é importante órgão de proteção e monitoramento dos direitos humanos e de limitação do exercício abusivo do poder estatal. O precedente do Caso Álvarez Ramos vs. Venezuela dá força para a corrente doutrinária e jurisprudencial, que reconhece na liberdade de expressão um sustentáculo da tolerância, da diversidade de opiniões e de fontes inerentes às sociedades democráticas e, com base no princípio da intervenção penal mínima, afasta os instrumentos do direito penal para manejar soluções para o exercício da liberdade de expressão responsável.

Referências

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CORTE IDH, Caso Álvarez Ramos vs. Venezuela, Exceções preliminares, mérito, reparações e custas. Sentença de 30 de agosto de 2019.

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CORTE IDH, Caso Herrera Ulloa Vs. Costa Rica. Exceções preliminares, mérito, reparações e custas. Sentença de 02 de julho de 2004.  

CORTE IDH, Caso Kimel vs. Argentina. Mérito, reparações e custas. Sentença de 2 de maio de 2008.

CORTE IDH, Caso Lagos del Campo vs. Peru. Exceções preliminares, mérito, reparações e custas. Sentença de 31 de agosto de 2017. 

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Paula Ritzmann Torres

Doutoranda em Direito Internacional pela USP. Mestre em Direito Internacional pela USP. Bacharel em Direito pela UFPR e em Relações Internacionais pelo Centro Universitário Curitiba. Advogada.

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3641-5027

([i]) Sobre o tema, ver SARMENTO, Daniel. Livres e iguais: estudos de direito constitucional, em especial “A liberdade de expressão e o problema do hate speech”. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

([ii]) A Composição da Corte IDH para o caso contou com os juízes: Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot, Presidente (México); Eduardo Vio Grossi, Vice-presidente (Chile); Humberto Antonio Sierra Porto (Colombia); Elizabeth Odio Benito (Costa Rica); Eugenio Raúl Zaffaroni (Argentina); Patricio Pazmiño Freire (Equador) e Ricardo Pérez Manrique (Uruguai).

([iii]) CORTE IDH, Opinião consultiva OC-5/85 de 13 de novembro de 1985.

([iv]) CORTE IDH, Caso A última tentação de cristo vs. Chile. Mérito, reparações e custas. Sentença de 5 de fevereiro de 2001.

([v]) CORTE IDH, Caso Carvajal Carvajal e outros vs. Colômbia. Mérito, reparações e custas. Sentença de 13 de março de 2018.

([vi]) CORTE IDH, Caso Palamara Iribarne vs. Chile. Mérito, reparações e custas. Sentença de 22 de novembro de 2005.

([vii]) Para maiores detalhes sobre o funcionamento da Corte IDH, ver PASQUALUCCI, Jo M. The practice and procedure of the Inter-American Court of Human Rights. 2 ed., Cambridge: Cambridge University Press, 2013. CARVALHO RAMOS, André de. Processo Internacional de Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 2019.

([viii]) “Artigo 13.  Liberdade de pensamento e de expressão. 1. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão.  Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e ideias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha. 2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito a censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente fixadas pela lei e ser necessárias para assegurar: a. o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas; ou b. a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas. 3. Não se pode restringir o direito de expressão por vias ou meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de frequências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de ideias e opiniões. 4. A lei pode submeter os espetáculos públicos à censura prévia, com o objetivo exclusivo de regular o acesso a eles, para proteção moral da infância e da adolescência, sem prejuízo do disposto no inciso 2. 5.  A lei deve proibir toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitação à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência.” ([ix]) “Artigo 11.  Proteção da honra e da dignidade. 1. Toda pessoa tem direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade. 2. Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, na de sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação. 3. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências ou tais ofensas.” 

([x]) CIDH, Liberdade de expressão no Brasil. Comilação de relatórios de 2005 a 2015. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, 2016. Disponível em:  <https://www.oas.org/pt/cidh/expressao/>. Acesso em: 14 jan. 2020.

([xi]) CORTE IDH, Caso Herrera Ulloa Vs. Costa Rica. Exceções preliminares, mérito, reparações e custas. Sentença de 02 de julho de 2004.  

([xii]) CORTE IDH, Caso Mémoli vs. Argentina. Exceções preliminares, mérito, reparações e custas. Sentença de 22 de agosto de 2013.

([xiii]) CORTE IDH, Caso Fontevecchia y D’amico Vs. Argentina. Mérito, reparações e custas. Sentença de 29 de novembro de 2011.

([xiv]) CORTE IDH, Caso Kimel vs. Argentina. Mérito, reparações e custas. Sentença de 2 de maio de 2008.

([xv]) CORTE IDH, Caso Lagos del Campo vs. Peru. Exceções preliminares, mérito, reparações e custas. Sentença de 31 de agosto de 2017. 

([xvi]) CORTE IDH, Caso Álvarez Ramos vs. Venezuela, Exceções preliminares, mérito, reparações e custas. Sentença de 30 de agosto de 2019, parágrafo 115.

([xvii]) ANTKOWIAK, Thomas M.; GONZA, Alejandra. The American Convention on Human Rights. Essential Rights. Oxford: Oxford University Press, 2017, p. 234.

([xviii]) CARVALHO RAMOS, André de. Curso de Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 701.

([xix]) CEDH. Lingens v.  Áustria, sentença de 8 de Julho de 1986; CEDH, Thorgeir Thorgeirson v. Islândia, sentença de 25 de junho de 1992; CEDH, Tuşalp v. Turquia, sentença de 21 de Fevereiro de 2012; CEDH, Sokołowski v. Polônia, sentença de 29 de Março de 2005.

([xx]) TSE. Recurso Especial Eleitoral nº 22484, Acórdão, Relator(a) Min. Admar Gonzaga, julgamento em 05/12/2018.

([xxi]) STF. Inq 3780, Relator Min. Teori Zavascki, Tribunal Pleno, julgamento em 20 de março de 2014.

TJSP. Apn. nº 0090009-33.2015.8.26.0050, 2ª Turma Recursal, Rel. Des. Maria Fernanda Belli, julgamento em 02 de outubro de 2017, v.u; TJSP. Apn. nº 0078212-60.2018.8.26.0050, 12ª Câmara de Direito Criminal, rel. des. João Morenghi, julgamento em 26 de setembro de 2018.

([xxii]) STJ, REsp n. 1.640.084/SP, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, 5ª Turma, julgamento em 15 de dezembro de 2016; STJ, HC n. 379.269/MS, Terceira Seção, rel. para o acórdão Min. Antonio Saldanha Ribeiro, julgamento em 24 de maio de 2017. STF, Ag. Reg no RE 1.049.152/DF, rel. Min. Dias Toffoli, julgamento de 7 de maio de 2018.

Recebido em: 16/01/2020

Aprovado em: 16/01/2020

Versão final: 21/01/2020